quarta-feira, 26 de agosto de 2009

VEREDA TROPICAL

É um grande terreno baldio bem no centro de Blumenau, coisa espantosa nestes tempos de especulação imobiliária.. Eu passo muito ali, mas só comecei a prestar atenção num dia do último verão, no auge do calor, tempo em que parecia que todas as plantas do mundo, grávidas de sementes, preparavam-se para a reprodução.
Naquele dia em que olhei primeiro, o terreno todo estava coberto por generoso capinzal de folhas finas, coisa assim de quase um metro de altura, explodindo de tanto verde, sendo que cada pé de capim tinha um longo fiapo carregado de espigas pejadas de sementes maduras. Tudo era fino, leve e bonito, naquele capinzal; parecia-se com um quadro holandês do século XVII. E lá, pousado nos finos fiapos que sustentavam as espigas, um imenso bando de passarinhos se deliciava comendo as sementes maduras. Era uma barbaridade de passarinhos, penso que centenas e centenas, pequenos e finos passarinhos que deveriam ser muito leves, pois conseguiam pousar sem problemas naqueles fiapos de capim. Eu fiquei a olhá-los, e de repente eles devem ter se assustado com alguma coisa, pois saíram numa revoada, fizeram uma curva no ar – e, sossegados, voltaram ao seu banquete, os pequeninos pés pousados naqueles finos fiapos de capim cheios de espigas maduras. Olhei-os por bastante tempo, e por diversas vezes se assustaram e revoaram – mas sempre voltaram àquela seara generosa feita de sementes de capim. No outro dia eles estavam lá de novo, e no outro também.
Um dia, os passarinhos sumiram – as sementes tinham-se acabado. Mas eu tinha ficado encantada com aquele capinzal que parecia até translúcido de tão verde, bem assim no meio da cidade, e não deixei mais de prestar atenção nele. E o verão acabou, e veio o outono, e o capim continuava lá, já um pouco menos viçoso, agora que passara sua época de reprodução. Imagino que os passarinhos não tenham comido todas as sementes, que muitas delas tenham caído ali no chão, prontas para hibernarem por alguns meses e nascerem na próxima primavera..
E o outono foi fazendo seu trabalho de destruição. A cada dia o capinzal perdia um pouco do seu viço; a cada dia o seu verde ia ficando mais próximo do marrom. Dia a dia, acompanhei o que acontecia naquele terreno baldio.
Um dia, o capim começou a cair, a morrer. E agora já não há mais capim, mas apenas uma palha escura e morta, agora que o inverno chegou mesmo. E então voltou aos nossos olhos o que houvera o tempo todo ali naquele terreno baldio: pedaços de plástico, de vidro, coisas de borracha, sobras de concreto – o lixo que as cidades produzem. Na minha mente, inclusive, ressurgiu o que houvera ali antes: um bar mal-afamado, chamado Vereda Tropical, que criava um certo escândalo na cidade, pois seus freqüentadores amanheciam o dia bebendo e às vezes punham-se a brigar já em plena luz do sol, quando esta é uma cidade que leva muito a sério a coisa da ordem e do trabalho, e se escandaliza quando há quem não vá para as fábricas antes das cinco horas da manhã, e acha que desempregado é alguém cheio de preguiça. Tanto escândalo causou aquele bar que a sociedade constituída não descansou enquanto não lhe passou um trator por cima.
E então, a natureza, benéfica, foi lá e criou aquele emocionante capinzal cheio de passarinhos, para mostrar às pessoas que aquela esquina podia ser LINDA! Pena que o inverno chegou, e eu descobri que debaixo daquele capinzal há o que sobrou do tempo das raivas e dos preconceitos, que nas raízes das coisas belas às vezes pode haver as sobras das coisas ruins. Pode funcionar como uma lição para as nossas vidas. Sempre poderemos criar capinzais cheios de passarinhos nos nossos corações.

Blumenau, 17 de Julho de 2003.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O DIREITO DE COMER GELATINA

A Salete foi menina temporã, nascida quase por engano, quando sua mãe já passava muito dos quarenta anos. Ela nasceu já com irmãos casados e sobrinhos. É importantíssimo, nesta história, contar desde já que a mãe, os irmãos, as cunhadas, os sobrinhos, toda a gente na casa de Salete era analfabeta, gente que não tivera a menor chance de aprender no passado e que não via o porquê de aprender mais tarde. Lá na casa dela defendiam-se coisas assim:
- “ Vacinas? Cruz credo, toda a nossa gente se criou sem tomar dessas besteiras! Nem morta que deixo filho meu tomar!”
Há que se considerar que Salete poderia ter seis irmãos vivos, mas só tinha três. Os outros, a falta de vacinas levara fazia tempo, pequenos ainda.
Não houve o que fizesse a mãe de Salete deixá-la tomar uma vacina – ela cresceu, mesmo, porque tinha saúde e sorte. Nem mesmo a madrinha conseguiu convencer a mãe.
Pois é, a madrinha. Quando se viu mãe de novo, D. Zulmira pediu à patroa que batizasse a menina, já que a patroa fora boa e dera enxovalzinho e tudo para a criança extemporânea. E a patroa levou a função a sério: não conseguiu nada com as vacinas, mas bateu pé quanto à escola: a Salete iria para escola, custasse o que custasse. A madrinha matriculava, comprava uniforme, comprava material, inventava histórias tenebrosas para a mãe da menina – o fato é que Salete foi para a escola desde o prézinho, a mãe se sentia obrigada ao ver a madrinha gastar dinheiro com aquelas bobagens de cadernos e livros.
Vamos dar um pulo na história. Tínhamos parado no prézinho – eu presenciei bem a coisa quando Salete já estava na quinta série. Mesmo aos trancos e barrancos, inteligente e esperta como era, na quinta série Salete estava plenamente alfabetizada e muitas outras coisas já aprendera, mas o seu grande diferencial em relação à família era a leitura. Pela primeira vez naquela família as pessoas podiam comer ... gelatina, ou pudim de caixinha, porque agora havia alguém que podia ler as embalagens e dizer como aquelas coisas deveriam ser feitas! Virou um luxo naquela casa comer gelatina, um luxo negado a todas as gerações anteriores daquela família. E a gelatina era só um símbolo: a capacidade de leitura de Salete modificava um monte de coisas para todo o mundo. Por exemplo, chegava gente naquela casa e dizia:
- “Dona Zulmira, a senhora pode fazer faxina para mim? É na rua tal, número tal.” – ou – “Fulano, estou precisando de um ajudante de pedreiro. Esteja amanhã cedo na rua tal, número tal.”
E, no mais das vezes, a gente daquela casa não conseguia chegar lá e perdia os empregos, porque não conseguia ler os nomes das ruas, os números das casas, o que estava escrito no ônibus. Eu presenciei estas coisas. E presenciei como Salete foi se tornando o centro da família: ela ia junto, achava o endereço, sabia o ônibus certo, ninguém mais perdia emprego ou oportunidade. Aí todo o mundo começou a dar valor à escola de Salete. Aí os sobrinhos dela começaram a ir para a escola também.
Hoje Salete é uma moça prestes a fazer vestibular. Quer ser professora. Ninguém mais que ela viu bem de perto a amargura de não se saber ler. Acho que quando ela alcançou o poder de fazer a sua família comer gelatina, inteligente como é, ela entendeu tudo. Você, que está lendo esta crônica, e que sempre comeu gelatina desde pequeno, saiba como é que é terrível o desconhecimento da leitura: até o direito de se comer gelatina pode ser tirado de quem não sabe as letras! Uma idéia é olhar aí em torno do seu mundo, para ver se alguém está sem esse direito. Sempre é tempo de encaminhar a tal pessoa para uma escola de adultos.

Blumenau, 22 de Julho de 2003.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Bento ou Benedito?

Quando eu era criança, eu via que o Brasil era como era. Depois cresci e li Gilberto Freire e passei a crer que vivíamos, mesmo, numa democracia étnica. Daí cresci mais e vivi mais, e fui vendo que a coisa não era bem assim, e veio Darcy Ribeiro e outros, mesmo assim eu acho que não estava nada preparada para o ato explícito de racismo institucionalizado ao qual assisti nesta semana.
Vejamos: eu liguei a televisão bem na horinha em que começou a sair uma primeira fumacinha lá na chaminé da capela Sistina, e logo a fumaça ela ficou branca! Era hora do Jornal “Hoje”, e a expressão “Habemus Papa” passou a estar na boca de todos, seguida da grande curiosidade: “Quem é, quem é?”Havia sido escolhido o alemão Joseph Ratzinger, e isto é assunto para que outra discussão! O que nos interessa, neste momento, é que quando se soube quem era o Papa, ele já havia escolhido seu nome de Papa, e o Jornal Hoje já estava devidamente calçado com a presença de um teólogo da USP, que dava explicações. Soube-se que o nome que o Papa escolhera significava “Abençoado”, e o teólogo foi taxativo: tanto em italiano, quanto em português, “Abençoado” significava “Benedito”, ou “Bento”. Então não havia dúvidas: Habemus Papa Benedito!
Por uns 30 minutos, no Brasil, tivemos o Papa Benedito XVI. O Jornal Hoje se estendia sem pressa com o teólogo da USP, quando de repente, uma meia hora depois, o nome do Papa passou para Bento. Eu cá estranhei: aquilo tinha cheiro de racismo! Lembrei-me de São Benedito, santo preto muito popular no Brasil, padroeiro das gentes negras – será que uma coisa não estava tendo a ver com a outra? Passei uma mensagem para uma amiga antropóloga na Alemanha, contando o que acontecia, e ela me respondeu: “Aqui ele é Benedikt. Eu acho que é racismo, sim!” Expus o caso para minha faxineira que viera nesse dia. Ela foi taxativa: “Bento fica melhor, tu não estás vendo? Benedito é nome di nego!” . Eram opiniões de áreas extremas. Telefonei para minha mãe e expus o caso – ela achava melhor não mexer com tais coisas. Então, só restava esperar. E esperei.
Nas horas seguintes, nos dias seguintes, fui vendo que a exclusividade do nome Bento pertencia ao Brasil (e agora descobri que a Portugal também). Na língua espanhola o papa é Benedicto; na língua alemã é Benedikt – na verdade, não pesquisei em muitos países, pois já conheço um bocado este Brasil onde “Benedito é nome di nego”, e posso entender este racismo que assola a minha gente, sob a capa de uma democracia étnica. E Portugal, bem ... se um dia fomos no embalo de Portugal, penso que hoje Portugal muito nos copia – basta ver o gosto dos portugueses pelas nossas novelas!
Taí o que queria falar. Se “Abençoado” , no Brasil, quer dizer Bento, e não Benedito, acho que São Benedito e nossos irmãos negros têm muito a ver com a coisa. Se na nossa língua não se aceita ter um Papa Benedito, eu acho que tem a ver com o mais descarado racismo, sim. Gilberto Freire que me perdoe, mas a tal democracia étnica está fazendo água.

Blumenau, 23 de abril de 2005.


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Meu Cachorro Atahualpa 7

(Para Júlia Beatriz Spézia, minha amiga que também está crescendo depressa)




Atahualpa está com dez meses e beirando os dez quilos – chegou àquele tamanho e peso que faz com que, quando corre pela casa atrás da sua adorada de borracha amarela, tire todos os tapetes do lugar. Também quando saímos para qualquer dos seus três passeios diários, tem ele força para me fazer andar na minha velocidade máxima enquanto caminha farejando o mundo como se o seu nariz preto e úmido fosse um periscópio, ou me botar a correr quando se põe a trote, atrás de qualquer coisa: uma borboleta, um passarinho, uma mosca, um amigo, uma idéia. Tenho que convir que tal estágio de vida do meu cachorro está me fazendo um bocado bem: a nova quantia de exercício levou embora uns quilinhos sobressalentes que estavam teimando em se fixarem em mim, e minha capacidade respiratória anda muito boa – sem contar que desenvolvi bíceps, de tanto carregar o meu bichinho. É que quem mora em condomínio, como eu, tem que carregar seu animal até sair para a rua – além do que o acostumei a se deixar levar no colo a cada vez que temos que atravessar uma rua.
Então, apesar dos dez meses e dos quase dez quilos, Atahualpa está tão acostumado a andar no colo, que se deixa carregar como um bebezinho, tanto de pé quanto deitado de barriga para cima.
O fato é que meu cachorro está ficando adulto, e eu acho que ele é o bichinho mais bonito do planeta, embora numa manhã destas uma moça olhou para ele e saiu correndo de tanto medo. Então dei uma cuidadosa avaliação na imagem do Atahualpa, e a verdade é que ele é o cachorro mais bonito do mundo, mas que também acabou criando uma expressão que deve ser bastante amedrontadora para quem não sabe da sua doçura e da sua propensão para brincar.
Se a gente o olha por cima, vê um comprido cachorro preto – mas se se encará-lo bem de frente, anda ele com a expressão que acreditamos tenham tido os vikings (pois já conheci alguns vikings de verdade e eles não eram nem parecidos com o que a gente imagina que tenham sido!), já que ao redor da sua barba amarelada, criou-se um halo de barba ruiva que lhe dá um ar bastante sinistro, se a gente não o conhecer. Não chegando a barba, sombrancelhas do mesmo amarelo ruivo, tufos de pêlos da mesma cor saindo-lhe das orelhas peludas e um colar no mesmo tom a lhe descer pelo peito dão-lhe um certo ar de leão, de feroz bicho do mato, e eu entendo muito bem porque aquela moça saiu correndo, ou porque outros transeuntes se afastam dele na rua, com um certo receio: será um ursinho de pelúcia ou um bicho feroz?
E ele está grande, um baita. Andei a medi-lo. Tentei primeiro com uma régua escolar, dessas de trinta centímetros – mal e mal a régua conseguia medir seu rabão de tamanduá! Saí a comprar uma trena, e não deu outra: meu cachorro está medindo UM metro, desde a ponta do nariz até a ponta do rabo, apesar de seu corpo ter apenas 35 centímetros de altura, já que ele tem pernas bem curtas, mas tão grossas, musculosas e potentes que, quando se põe a trotar, tem força para me arrastar atrás dele como se eu fosse feita de vento!
E seu pêlo de seda negra, ah! como está bonito, principalmente quando ele chega de algum acampamento, donde vem mais sujo do que se possa imaginar, e toma um caprichado banho com muito xampu! É um pêlo único, cada tufo nascendo para uma direção diferente, uma coisa indescritível de tão macia e bonita, que balança e se mexe conforme os movimentos que faz seu corpão de quase dez quilos, pura seda que não dá nem para contar.
Tenho uma amiga que fica insistindo para que eu mande aparar o pêlo do Atahualpa, para que faça o modelito tal ou tal, e fico toda ofendida: além de estarmos no inverno (e aquele pêlo ser o casaquinho dele), se aparar aquela revolução de seda negra que cobre o meu bichinho, ele passa a ser um cachorro como qualquer um – e já não será mais o Atahualpa! Pois Atahualpa é um cachorro único, tanto no gênio e na aparência, quanto dentro do meu coração!



Blumenau, 31 de agosto de 2008.

Atahualpa 6 - Carinho

(Para Adenilson Teles, no tempo em que ele tinha doze anos e trabalhava numa mercearia)


Um pouco antes de Atahualpa vir para a minha vida, eu perdi um grande, grandessíssimo, enorme amigo que era o jornalista Adenilson Teles. Teles foi matado por uma mulher que não podia perder um minuto na vida, e que fê-lo perder a vida num segundo, ultrapassando com velocidade numa lombada.
Teles morreu no finalzinho de outubro; Atahualpa veio para a minha vida no dia 6 de dezembro. Se hoje, quase um ano depois, eu ainda fico arrasada de dor quando me lembro do Teles, imaginem como foi lá no ano passado.
Teles fora o grande sonhador e batalhador para que tivéssemos uma rádio comunitária. Muito ele trabalhou, lutou e sofreu para que tal acontecesse, e a rádio estava legalizadinha, pronta para voltar ao ar sem mais entraves, quando ele partiu.
Fico pensando, agora, se Teles não ajudou às cegonhas dos cachorros para que Atahualpa viesse cair na minha vida quase que como por milagre, como uma forma de mitigar um pouco a minha dor.
Outra coisa a se contar nesta introdução é que na cidade de Blumenau, onde vivemos, quarenta graus de calor, no verão, é fichinha, e então, principalmente nas grandes férias coletivas entre Natal e Ano Novo, quase todo o mundo foge para as praias próximas, e a cidade fica como que às moscas. Todo o mundo que trabalhava na rádio comunitária iria sair, e a rádio seria fechada. Foi então que me ofereci: como uma homenagem ao Teles, eu ficaria na rádio durante alguns daqueles dias, e a manteria funcionando. E mudei-me para ela de mala, cuia e meus apetrechos de camping, o que incluía uma caixa com comida e água, o que foi providencial, pois não havia nadinha nadinha aberto onde se comprar comida lá no bairro da rádio. Os meninos que carregavam o piano da rádio deixaram para mim um colchão que eu podia botar no chão e dormir, lá dentro mesmo do estúdio. É claro que aquele pedacinho de cachorro preto e peludo mudou-se comigo para lá!
Como era quente, naqueles dias, lá dentro da rádio! Eu tinha que despertar um pouco antes das seis da manhã, para colocar a rádio no ar as seis, e a mantinha funcionando até as dez da noite. Passava grande parte do tempo fazendo seleções musicais e brincando com o meu filhote, já que pouco conseguia me concentrar para escrever ou ler, tamanho o calor infernal que me mantinha inundada em suor dia e noite, apesar de alguns ventiladores ligados ininterruptamente. E na hora de dormir arrumava uma cama para mim no colchão no chão, e fazia uma caminha com a fresca colcha de seda azul para o meu cachorrinho, assim bem pertinho do colchão, para que ele não se sentisse só.
Então, numa noite... apesar de ser tão peludo e do calor que fazia, Atahualpa deve ter sentido algum frio – afinal, ainda era um bebezinho – então, numa noite, eu senti pela primeira vez aquele cachorrinho que era como um bife esforçar-se para subir no meu colchão, que decerto lhe parecia muito alto, e mansamente, silenciosamente, esgueirar-se lençol afora, até vir a se abrigar bem juntinho a mim – acolhi-o no meu peito, abriguei-o com minha mãos, e ele dormiu ali, junto do meu coração, até que a manhã chegasse. Já não lembro quantas noites ficamos lá, mas ele repetiu aquele gesto de carinho e veio se colocar sob a minha proteção a cada noite, e era como se um elo novo estivesse se criando entre nós.
Lembrei-me muito de tal coisa nesta tarde de inverno, quando estamos mais ou menos acampados numa casinha de troncos que parece casinha de cinema, na pousadinha que passamos a freqüentar faz tempo, neste lugar chamado Nova Rússia.
Cansada como ando, depois de comer alguma coisa á guisa de almoço, fui dormir um soninho na cama, com a ajuda do meu cobertor vermelho e da minha coberta de penas. De repente, no meio do sono, senti que havia mais alguém na cama. Mesmo semi-inconsciente, dei-me conta que, apesar dos nove meses e dos nove quilos, Atahualpa continua sendo um filhote que sente frio, pois era ele que se movimentava devagarinho sobre o lençol e vinha se abrigar em silêncio sob a maciez da minha coberta de penas. Ele virou um cachorrão peludo, mas dentro dele continua existindo aquela necessidade de calor e de carinho que o fazia subir no meu colchão lá na altura do Ano Novo. Laços de carinho, assim, não se quebram com facilidade!
Então, me deu tanta saudade do Teles!


Blumenau, 01 de Agosto de 2008.

Meu Cachorro Atahualpa 5

(Para João Cândido Spézia de Souza, o Joãozinho da Lisi e do João Grandão)


Aos dois meses, quando chegou na minha casa, Atahualpa foi morar dentro de uma caixa de papelão, na área de serviço. Bem encostadinho à sua cama, eu deixava um rádio ligado bem baixinho, nas noites, para que ele não se sentisse sozinho. Era dezembro; portanto, verão, e sua primeira caminha foi uma colcha de seda azul e branca que existia na minha casa desde o Natal em que eu tinha três anos. É claro que na hora em que eu assistia aos jornais na televisão ele ficava no meu colo, todo embrulhadinho nos mais lindos panos africanos que eu tinha, e que também andava por aí no meu colo, inclusive no meu carro, enquanto eu dirigia, pois era um pedacinho de nada de cachorro, um bife, como já disse outro dia. Comprei uma coleirinha verde número zero, que lhe ficava grande, e demos os primeiros passeios juntos, e ao primeiro medo, ele corria a se esconder sob a barra dos meus vestidos, que costumam ser compridos.
Aos poucos, porém, ele foi se apossando do meu escritório, e tenho coleções de fotos dele debaixo da minha mesa ou sobre o tapete azul que há defronte dela. Ficava ali por todo o tempo em que eu trabalhava, e lá pela meia noite, quando eu ia dormir, levava-o para a área de serviço, acomodava-o direitinho na caminha azul e branca e lhe desejava boa noite – e acho que ele nem se mexia a noite toda, pois, nas manhãs, quando tornava a abrir a porta da área de serviço, ele ainda estava deitado do mesmo jeito, e então se espreguiçava todo, enquanto abanava o rabinho de nada!
Atahualpa era tão pequenino que, ao chuveiro, eu lhe dava banho segurando-o junto ao meu peito, e ele chorava o tempo todo, durante o banho, como se fosse um nenenzinho. Morria de frio depois dos banhos – eu o embrulhava com diversas voltas na maior toalha que tenho, depois o secava com uma segunda toalha, e o frio não passava, não importava o calor que fizesse – num instante ele se tornou dono, também, da minha linda colcha cearense amarela, que eu usava sobre o sofá da sala – para se aquecer, tinha que embrulha-lo na colcha amarela e ajeita-lo dentro de uma cesta tecida pelos índios Xokleng, legítimo artesanato pelo qual eu tinha o maior carinho, e colocar a cesta sobre um banquinho, bem encostadinha em mim, enquanto ficava trabalhando no computador. Era lindo, aquele cachorrinho peludo e preto dentro daquela colcha amarela!
Ele era tão friorento que comecei a pensar seriamente num enxoval de inverno que o abrigasse. Dei uma olhada nos armários, e encontrei um acolchoado daqueles que faz 30 anos que não é usado. Dobrei-o em quatro partes – parecia um tamanho bom para um cachorro que um veterinário me dissera que acabaria tendo uns 8 quilos. Então comprei flanelas xadrez, bem másculas, e pedi para a Rovena, a minha costureira, para fazer duas lindas capas de colchão para ele. Antes que o primeiro frio chegasse, lá estava Atahualpa com seu colchãozinho chique, do qual ele se apossou ao primeiro olhar. Naquela altura, ele deveria estar com uns cinco meses – agora, aos oito, ainda filhote (mas já com os oito quilos), ele já quase não cabe mais naquele colchão- e para não alongar demais esta crônica, conto como está, atualmente, a cama do Atahualpa, neste tempo de frio: além do colchãozinho inicial, tem um edredon do meu uso pessoal, dois travesseiros e uma manta de lã andina, tudo combinando na cor, e tive que comprar uma série de fronhas novas, pois, além dos travesseiros da cama, ele precisa de dois travesseiros no carro, para poder se sentir confortável. (E há que multiplicar isto por dois, pois há que trocar tudo a cada semana, para ele ficar limpinho.)
Na prática, na prática, atualmente tenho que lavar uma maquinada de roupa a mais, a cada semana, só para dar conta da roupa de cama do Atahualpa (sem contar as toalhas de banho).
Ter um cachorrinho é uma coisa fascinante, mas que dá trabalho, lá isso dá! Mas como eu poderia viver, hoje, sem ele?


Blumenau, 14 de Junho de 2008.

Meu Cachorro Atahualpa 4

(Para Valentina Moreira Monteiro)


Vi a notícia na Internet: iria haver uma cãominhada na minha cidade, no domingo de manhã. Para deixar bem claro, é melhor escrever de novo: cão-minhada, quer dizer, uma caminhada de cachorros. Eu estava cheia de mensagens eletrônicas para responder, um livro para revisar, além de outros e outros serviços, mas pensei comigo que o meu cachorrinho não podia perder aquela oportunidade de conhecer outros cachorros e fazer novos amigos. Assim, botei o relógio a despertar para acordar a tempo, vesti minha camiseta nova, botei na bolsa um punhado de ração e um vidro com água fresca, e corri para o lugar onde aconteceria a cãominhada.
No primeiro momento, Atahualpa não entendeu bem o que se passava: parou no primeiro cachorro que encontrou e os dois ficaram se cheirando, ambos sem se darem conta do grande horizonte que se descortinava para eles naquele dia. Tive que forçar meu filhote para ele ir adiante e ver aquele mundo inacreditável, onde cachorros de todos os tamanhos e modelos, cada qual com o seu dono, se preparava para a estupenda cãominhada que aconteceria!
Na escola, fui boa em aritmética, mas ali naquele ondulante e barulhento mundo canino, perdi completamente o meu senso de contagem, e avaliei que talvez houvesse ali uns 300 cães – mais tarde saberia, pela imprensa, que eram 590. E havia cachorros de todos os tipos, alguns tão grandes quanto bezerros, ostentando soberbas jubas das mais diversas cores, até outros tão pequeninos que se escondiam dentro de uma mão e iam no colo do seu dono, pois aquele pequeno trecho onde aconteceria a cãominhada, para aqueles minúsculos, era tão enorme quanto atravessar o deserto do Atacama.
Para Atahualpa, acostumado a andar comigo seis a oito quilômetros, aquele trecho não era nada – o problema era que aquela cachorrada toda estava tomada do maior pasmo: nenhum deles, nem o mais grandão e nem o mais pequenino, nenhum mesmo, algum dia, havia pensado que poderia haver no mundo tal quantidade de cachorros! E quando aquele mundo ondulante e colorido se moveu rua afora, puxado pelos donos, os 590 animais faziam a mesma coisa: todos latiam e se cheiravam, e uma coisa que me deixou muito impressionada foi a igualdade que existia entre eles: entre si, todos eram iguais, não importava tamanho, cor, pedrigee, roupas bonitas, pêlo macio ou pêlo duro, focinho de galgo ou de vira-lata. Tirando um grandão, com cara de mau, que usava, inclusive, uma focinheira, e ficava dando ferozes arremetidas contra os outros, aqueles cachorros todos estavam era se amando muito, e o que mais se via eram rabos balançando enquanto eles se cheiravam e se amavam aos latidos! De uma certa forma, aquela cãominhada estava me levando a lembrar de um certo tempo que vivi em minha vida, chamado Movimento Hippie
Os organizadores da cãominhada haviam pensado em coisas práticas, e de espaço a espaço, na calçada, havia recipientes plásticos com água, pois o sol era quente e a cachorrada estava toda tão encalorada e cheia de emoção que quase todos tinham as línguas para fora, de tanta sede. Não é de se estranhar que os grandões, com suas longas pernas, em pouco tempo estivessem na linha da frente da cãominhada e fossem os primeiros a beberem daquela água fresca – bebiam com tal sofreguidão, fazendo “schlept, schlept, schlept”, que a água ficava toda cheia de bolhas de baba, parecendo água com sabão em pó batido. Ainda bem que a maioria dos donos dos cachorros pequenos, como eu, se lembrara de levar junto a água do seu companheirinho.
Em pouco tempo, na maior barulheira, aquela cãominhada chegou ao fim, e Atahualpa tinha os olhos tão vidrados de profunda emoção quanto todos os outros, e não tomou um golinho d’água que fosse, nem um pedacinho de ração. Ainda conversei um pouquinho, por ali, dando mais um pouco de chance ao meu filhote para viver aquela manhã encantada, e quando chegamos em casa, era meio dia. Atahualpa estava totalmente exausto de tanta emoção. Não quis beber, não quis comer, não quis carinho, não quis nada. Deitou-se na sua caminha e dormiu como um morto o resto do dia, sem mais forças para qualquer coisa!
Disseram-me que em agosto vai ter outro evento igual! Vamos lá, não vamos, Atahualpa?


Blumenau, 04 de junho de 2008.

Meu Cachorro Atahualpa 3

(Para Alice Klueger Bezerra)



Atahualpa está completando seis meses nesta semana, e até parece festa de aniversário o que aconteceu hoje. É bem verdade que na semana passada ele conheceu um cavalo – estávamos a uns cinqüenta metros do cavalo quando o vi, e então chamei a atenção do meu cachorrinho, até que ele se deu conta daquele bichão lá adiante. Como saudável cachorro que é, Atahualpa transformou-se numa linha retesada entre focinho e rabo, apontando para aquele ser que, no mínimo, na sua imaginação de cachorro, deveria ser parente de Deus, e pôs-se a latir em altos brados. Foi tudo o que aconteceu – cumprida sua obrigação de cachorro, ele não avançou um passo sequer em direção àquele monstro, decerto aterrorizado por descobrir que havia uma coisa assim no mundo. Tive que pegá-lo no colo e levá-lo até o cavalo, que estava bem seguro por detrás de uma cerca. No meu colo, Atahualpa perde o medo de tudo, até do cachorrão que o mordeu, uma vez, quando era pequenino – e então, no meu colo, ele suportou numa boa ser levado até diante do focinho do cavalo, que o cheirou e fungou sobre ele – a bem da verdade, há que se dizer que Atahualpa estava com o impressionante rabão entre as pernas.
Então, na tarde de hoje, como se fosse uma festa de aniversário, saímos a passear pelas estradinhas deste lugar chamado Nova Rússia, a vermos ribeirões, riachinhos e nascentes, e o pequeno cemitério onde ele se deliciou a correr e latir entre os pouco túmulos, e depois voltamos à estradinha, e – meu, o que terá passado pela cabeça do meu cachorro quando viu aquilo? Numa curva da estrada, também devidamente seguro por detrás de uma cerca de arame, havia nada mais nada menos que um baita touro malhado de branco e alaranjado! Com um olho, Atahualpa espiava para mim, e com o outro, espiava para aquela monstruosidade, enquanto latia como se o fizesse para salvar a vida. Ele já passara pela experiência do cavalo na semana passada – espiava, agora, para ver a minha reação diante daquela novidade inimaginada. Quando me viu fazer sinal de que não havia perigo, que aquele era um bicho bom, Atahualpa quase ficou rouco de tanto latir no imenso touro, que o olhava com o maior desprezo, como se olhasse para uma formiga!
Se havia um touro, é porque deveria haver vacas, e elas apareceram logo na curva seguinte, um pasto com umas quinze vacas as mais mestiças possíveis, o que deve ter criado a maior confusão na cabeça do meu cachorrinho. Será que aquilo era tudo a mesma coisa? Aqueles animais chifrudos e os outros quase sem chifres, era tudo bicho decente, em quem se poderia latir? E por que será que umas eram avermelhadas, outras malhadas, outras barrosas, e assim por diante? De novo ele me espiou com um olho até eu lhe fazer saber que se tratava de bons animais, e de novo ele se esgoelou em latir, enquanto continuávamos pela estradinha, até que, uma ou duas curvas adiante, apareceu coisa muitíssimo mais estranha.
Com tantas nascentes naquela área, é normal que diversas casas tenham lagos no jardim, mas de bichos de lagos Atahualpa só sabia de peixes, sapos e rãs. Que era aquilo ali, então, dois bichos baixinhos, de formato estranho, que o espiavam na maior desconfiança? Eu sabia que se tratava de grandes marrecos, e talvez aqueles marrecos já tivessem tido experiências más com outros cães, não sei – o fato é que estavam bastante desconfiados... e o meu cachorrinho, então, nem se fala! Rabo e focinho retesados, ele se aprontava para não sei que defesa, sem a menor coragem de chegar perto, latindo angustiosamente. De novo tive que pegá-lo no colo para ele perder o medo, e levá-lo até à cerca daquela casa. Os marrecos não gostaram nada nada daquela aproximação – orgulhosamente, entraram no lago e saíram nadando até bem longe, com o maior olhar de desprezo que conseguiram, deixando meu filhote atônito e abobado de tanta fascinação por aqueles seres que não mergulhavam como as rãs.
Atahualpa está fazendo seis meses. Acho que é mais ou menos assim que são as festas de aniversário dos cachorros!


Blumenau, 03 de abril de 2008.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Meu Cachorro Atahualpa (2) - Urda Klueger

(para Rafael Bomani Machado Ferreira)

Por muitos e muitos anos eu não quis ter em minha casa sequer uma planta, para não estar preocupada em quem a regaria quando fosse viajar – imaginem se passava pela minha cabeça ter um animalzinho! Então um dia... pois é, sempre tem um dia!
Passei de manhã numa agropecuária, e havia duas jaulas cheias de cachorros e cachorrinhos para serem doados. Dei uma espiada, e ele me “pescou” na hora, com seu olhinho maroto e seu rabinho que parecia um fio de lã preta abanando. Mas se eu não queria nem sequer uma planta na minha casa...
Fui embora, mas era como se não tivesse ido. Talvez aquele tenha sido um dos dias mais complicados da minha vida. Não conseguia tirar aquele bichinho da minha cabeça – e se eu ficasse com ele? Tinha lá também uma irmãzinha dele, preta e branca, e havia cachorrinhos “de raça”, mas era aquele vira-latas peludinho preto quem me cativara, e a partir do meio dia o meu pensamento já era outro: se ninguém o tivesse pegado até o final da tarde, eu iria ficar com ele. Depois de tal decisão, outra se impunha: que nome dar ao bichinho? Não podia ser um nome qualquer, e fiquei divagando entre os nomes mais bonitos que conhecia, principalmente os dos meus heróis da Literatura, e por pouco ele não veio a se chamar Capitão Rodrigo. A História se impunha, também, e a força desta minha América tão amada, e pensa de cá e pensa de lá, e cheguei em Atahualpa, o último imperador Inca, aquele que foi traiçoeiramente assassinado pelo invasor espanhol – Atahualpa nascera do amor, fora um grande imperador... sim, sim, só restava saber se eu iria ter, mesmo, o cachorrinho.
Esperei até dez para as seis para voltar à agropecuária, e descobri que TODOS os animais que estavam lá para doação, naquele dia, tinham arranjado dono e ido embora – todos menos um cachorrinho que estava abandonado lá no canto de uma jaula, abanando um rabinho que parecia um fio de lã preta do tamanho de um dedinho de bebê – foi um momento mágico, aquele, quando peguei Atahualpa no colo, embrulhei-o num florido pano vermelho e fui com ele até o carro, mostrando-lhe o que havia ali por fora e começando nossa primeira conversa:
- Olha só, Atahualpa, veja como o mundo é grande! – e fui me exibir com ele para a minha amiga Dina, perto dali.
Era seis de dezembro, dia de São Nicolau, importante dia da minha cultura, quando as crianças colocam o sapato na janela para ganhar chocolates, balas e castanhas de São Nicolau. Para mim, era como se eu tivesse botado o sapato na janela também!
Nos dias seguintes, descobri o quanto Atahualpa era fraquinho, como estava doente, com desinteria, e houve momentos em que entrei em pânico, porque o Natal se aproximava e os veterinários estavam saindo de férias e os hoteizinhos estavam lotados por causa dos feriados e eu tinha que ir para Florianópolis lançar um livro, e então Atahualpa ficou mal mesmo, e consegui um veterinário que o atendeu – e desfez toda aquela bobagem de que cachorro moderno só pode comer ração: mandou-me para casa dar-lhe arroz com frango, aos pouquinhos, para que ele não vomitasse de novo. Fui para a cozinha com o coração na mão, e quando ficou pronto aquela comida nova, ele a devorou com tal ferocidade, e ficou latindo e me olhando com tal ódio por não lhe dar tanto quanto queria, que até hoje lembro dos seus olhinhos negros tão cheios de indignação e raiva que pensei que poderiam me matar.
Aos pouquinhos, ele foi melhorando, mas foi só a 24 de dezembro, manhã de Natal, que acho que ele ficou bom. Levei-o a dar uma voltinha na calçada, e de repente ele encontrou um grande pedaço de lingüiça abandonada em algum lugar, e apoderando-se dela, rosnou para mim e mostrou-me os dentes, e fugiu com a lingüiça para debaixo de um automóvel, e lá, esbarrando no meu desespero, devorou aquela lingüiça toda num instante, deixando-me morta de preocupação, lembrando das lingüiças com veneno que gente malvada espalha por aí para matar cachorrinhos incautos. Voltei com ele para casa para poder observá-lo: se ele comera veneno, logo começaria a passar mal, e haveria que correr ao veterinário para abreviar a sua agonia, mas o dia passou e nada aconteceu.
Então, naquela noite de Natal, eu tinha que ir a duas festas, e deixei meu cachorrinho comer tanto churrasco, banha e lingüicinha quisesse, e depois disso ele nunca mais ficou doente. Faz pouco mais de três meses que está comigo – não passava de um bife, quando veio – tinha 800 gramas e um rabinho de fiapo de lã. Agora é Páscoa, e virou um rabudo de palmo e meio de rabo tão grosso quanto o meu polegar, e nesta semana estava pesando seis quilos, e desenvolvi músculos novos nos braços de tanto carregá-lo para atravessar as ruas e coisas assim. Está com cinco meses, e não imagino o quanto ainda irá crescer. Que parceria que fomos arranjar, não, Atahualpa?

Blumenau, 21 de março de 2008.

Meu Cachorro Atahualpa

(Para Bartolomeu Moreira Monteiro)


Penso que, no mundo dos cachorros, Atahualpa às vezes aparece como um cachorro exibido, como algumas crianças que viajam para a Disney e depois ficam se pavoneando na escola, cheias de importância, diante de amiguinhos que talvez só foram ao Beto Carrero[1] ou talvez nem lá foram.
É que Atahualpa é um cachorro de apartamento, e no condomínio onde moro, que tem 64 apartamentos, deve ter pelo menos uns 40 cachorros (mais dois gatos e dois papagaios, quanto sei), e tirando um outro cachorro que anda até de moto, Atahualpa foge inteiramente ao modelo “cachorro de apartamento”. Desde o primeiro dia que chegou que eu o levo por todos os lados onde posso, deixo-o correr livre pela natureza, acampo com ele, deixo-o comer tudo o que um cachorro pode comer. Ouço horrorizadas expressões de gente moderna, que tem cachorros modernos, movidos à ração:
- Não se pode dar nada além de ração aos animaizinhos! Leite, nem pensar! Tu estás louca – leite lhes dá dor de barriga!– e então lembro dos cachorros da minha infância, que comiam arroz, feijão, salada e carne, como todo o mundo, e aipim com molho, ou pão com manteiga ou sem manteiga, ou fosse lá o que fosse, e viviam longas vidas de 15, 20 anos, o que é velhice extremada para um cachorro. E deixo Atahualpa comer de tudo (em uma das refeições do dia faço questão que ele coma ração, tipo complemento alimentar, assim como as mães fazem as crianças tomarem complexos vitamínicos), e ele começa o dia querendo bolo com leite, bem misturadinho, amassadinho, para não ter o trabalho de mastigar. Há que ser bolo, pois pão, para ele, exibido como é, nem pensar – se bem que noutro dia, num camping, apareceu um cachorro faminto que devorou quase todo o pão que eu tinha, e então, na coisa da competição, Atahualpa se tomou de amores pelo pão, e comeu pão seco com o maior apetite e a maior voracidade. Tirando tais exceções, no entanto, há que ser bolo, e virei uma formiga carregadeira a trazer bolos ingleses do supermercado, sendo que eu quase nunca como bolo e Atahualpa tenha definida preferência pelo bolo inglês, que num instantinho some da embalagem, diante do apetite dele.
Ele adora carne, claro, mas peixe, nem pensar. De peixe, a única coisa que gosta é de lagoas de peixe, onde há plantas aquáticas que ele ataca aos latidos, agarra-as com os dentes, acaba por mergulhar na água, e sabe como é, lagoas de peixe normalmente têm um certo cheiro característico, e depois de tais mergulhos, há que se levar Atahualpa para casa e botá-lo debaixo do chuveiro, outra coisa inconcebível para cachorros de apartamentos, que tomam banho em pet shops sofisticados, são secados com secador e cortam as unhas com tesourinha. Só uma vez um veterinário se meteu à besta e andou cortando as unhas do meu cachorrinho – nunca mais tal ato se repetiu. As unhas de Atahualpa se gastam de tanto andar e correr, seja no cimento das calçadas, seja nos amplos espaços da Natureza, como na beleza desta pousada onde estou nesta sexta-feira-santa, com direito a lagoa de peixe, rio, matas e campinas de grama com muitas flores, e ontem à noite Atahualpa chegou de volta tão molhado e tão cheio de carrapichos, que um dos olhos dele nem abria, tantas foram as camada de carrapicho que foram se sobrepondo umas às outras na sua peluda cara de cachorro safado, e eu tive que ajudá-lo a livrar o olho e o resto do pêlo, e ele estava com tamanha fome que devorou um pote de ração sem o menor constrangimento, ele que faz todo o tipo de frescura para comer só bolo e carne.
Diria que Atahualpa é um cachorro feliz, enquanto o observo, neste momento, em correria e lutas com uma cachorra adulta daqui da pousada, um feixe de músculos a corcovear pela grama, ao lado da lagoa de peixes, coisa que não seria admitida pelos donos dos seus colegas ”de apartamento”. É por isto que digo que acho que ele deve se comportar muito exibidamente diante da sua turma, tipo aquelas crianças que viajam para a Disney e que depois se acham mais importantes que as outras nas salas de aula. Também, pudera! Quantos cachorrinhos têm a vida que ele tem?



[1] Beto Carrero: Parque temático onde adultos e crianças se divertem, no Estado de Santa Catarina/Brasil.

Europa Brasileira 4 - Asco

Estou aqui a lembrar do que me contou o João. Claro que o nome dele não é João, pois não sou tansa o suficiente para botar o nome verdadeiro dele e fazer com que ele incorra no desagrado dos poderosos que poderão se armar com represálias e acabar com o pobre trabalhador blumenauense, oficial pedreiro, que ganha a vida com dignidade construindo as casas e os edifícios para a burguesia. João é jovem, é casado, tem três filhinhos – com seu suado salário comprou um terreninho numa encosta e construiu uma bela casinha também para si, fez varanda, garagem, a mulher dele botou cortinas nas janelas, plantou roseiras na frente – a vida ia que era uma beleza, João pensando em arranjar um cachorrinho para brincar com as crianças, quando veio o Desastre, a Desgraça – e numa tarde de chuva, em novembro de 2008, a casinha e o terreno dele escorregaram morro baixo, e mal e mal ele conseguiu salvar a família. Faz algo como 105 dias que tal ocorreu, e João teve a grande sorte de não ter que ir com a família para um dos muitos abrigos da cidade, onde ocorreram coisas que nem se acredita – um cunhado dividiu com ele a casinha onde morava, e lá também havia duas crianças.
Tá, há 105 dias atrás esta minha cidade estava em tal caos que só estando aqui para acreditar, e faltou comida na casinha onde João se abrigara. Tal não seria problema, claro, as estradas de acesso à cidade mal davam conta de deixar passar os caminhões e caminhões de donativos que chegavam de todo o país e do exterior, tanta comida que agora, passados os tantos 105 dias, o responsável pelo assunto na cidade andou informando que ainda há 200 TONELADAS de donativos estocados. E João foi em busca de comida para a sua gente.

- Amiga – ele me disse – perdi a conta de quantos cadastros tive que fazer aqui e ali para ganhar algo para trazer para as crianças. Se eu conseguisse um quilozinho de arroz que fosse já ficaria feliz – não havia mais nada para as crianças comerem.

Pois vocês acham que João ganhou um quilozinho de arroz? Ganhou nada! E tinha gente ganhando carros tão cheios de comida que as rodas ficavam meio arriadas de tanto peso! Quem será que levou tanta comida para onde?

Sei que João e sua gente nada ganharam, tiveram que se virar com a fome, vendo gente com carros de rodas arriadas de tão lotados passarem defronte da casinha onde estavam abrigados. João é preto, sua família também. Será que isto tem algo a ver? Talvez tenha, talvez não, pois também ouvi diversas pessoas brancas me contando histórias muito parecidas.

Daí fico lembrando de outras histórias ouvidas nestes últimos 105 dias, como o daquele homem que estava num abrigo, e ajudou a descarregar de um caminhão caixas e caixas e mais caixas de sobrecoxa de galinha desossada, pitéu caro e raro, e ficou com água na boca, esperando para comer ao menos umazinha, quando ela fosse servida, só que naquele abrigo nunca se comeu sobrecoxa de galinha desossada. Para onde foram aquelas caixas todas? Para um supermercado, ou talvez para os amplos congeladores de burgueses que fedem?

E lembro mais: da minha amiga Janete (claro que também não sou tansa o suficiente para dar o nome verdadeiro da Janete!), que é da APP de uma escola, e que faz poucas semanas estava na escola e veio uma mãe buscar uma lata de leite para seu bebê. Ela atendeu à mãe, deu o leite para o qual aquela criança estava cadastrada, e juntou ao leite algumas caixinhas de água de coco. Nunca estive naquele abrigo e não sei quem o dirige, mas foi o tal diretor (ou diretora) quem partiu para cima da Janete: não era para dar a água de coco. Janete já teve suas crianças, sabe que elas precisam de suplementos além do leite, e rebateu a proibição – por que não podia dar, se era coisa de doação? Levou uma bronca – não era para dar e pronto. Fico pensando em qual supermercado deve estar sendo vendida aquela água de coco proibida, ou em qual geladeira de qual burguês ela está...

São pequenas amostras do que acontece por aqui por esta cidade de Blumenau. Se fosse contar cada história que acabo sabendo, mil folhas talvez não fossem suficientes.

E agora estão jogando comida fora, comida cuja validade venceu! Quantas toneladas estão jogando? Não sei, mas desta vez não tenho como passar por mentirosa, pois antes de mim a imprensa radiofônica e televisiva noticiou, com as devidas imagens e tudo – disseram-me também que saiu em jornais de papel, mas eu, pessoalmente, não botei os olhos neles, e então não faço afirmações a respeito. Mas o quilo de arroz que foi negado às crianças de João está lá no lixão da cidade, e tantas outras coisas, tantas outras! Quando a imprensa começou a noticiar, as autoridades disseram que era coisinha de nada, comidas que já tinham chegado vencidas há 105 dias atrás. Uma ova que era! Era a comida que foi negada a tantos Joões e tantas crianças, brancas e pretas, decerto para se ver quem podia levar maior vantagem com o que sobrasse.

Sei que você doou, e você também, e você outro decerto também – e não me esqueço daquele homem de Salvador que apareceu na televisão, ganhador de salário mínimo, mas que também conseguiu doar um pouquinho...

Sinto asco de certa parte da humanidade que é capaz de deixar criancinhas sem um quilo de arroz ou uma água de coco, para jogar comida no lixo depois. Ai, que asco que sinto!

Europa Brasileira - Alojamentos 1

Ontem minha cidade de Blumenau foi diferente. De repente, saído de todos os seus esconsos (pois a imagem bonitinha de Europa Brasileira que se mantém QUASE preservada no centro, com fundas camadas de maquiagem, como aquelas bisavós que querem continuar parecendo gatinhas de vinte anos), uma população inteira de desvalidos saiu e até fugiu dos abrigos públicos mantidos nas escolas do município, e veio para praça pública. Quem era essa gente?Eram os trabalhadores de Blumenau, aqueles que passaram grande parte das suas vidas trabalhando para fazer a sua casinha, e que a construíram, a pintaram, a muraram, fizeram jardins, esticaram redes nas varandas para melhor poder conversar com suas mulheres ao por do sol, que nelas criam ou já criaram seus filhos, que tinham aqueles lugarzinhos bonitos, com cortinas na janela e roseiras perto da cerca – e que de um momento para o outro viram a terra desmilinguir, virar gelatina se liquefazendo, e suas casas irem embora dentro de mares de lama, tantas vezes levando junto entes queridos ... e que acabaram nos abrigos públicos de que já falei acima.
Eu fiquei tão perdida no tempo desde que tudo começou que já não sei desde quando eles estão lá (e eu estou aqui, pois também sou uma desalojada), mas sei que foi logo a seguir do dia 20 de novembro. 21? 22? 23? Já não sei, e também não importa o dia, pois dia se emenda em dia, e semana em semana, e agora já está começando o terceiro mês desde que tudo começou – e os trabalhadores da minha terra continuam jogados nos abrigos, sem nenhuma perspectiva de terem sua dignidade restaurada, e com a ordem de desocuparem os abrigos até semana que vem.
As injustiças são tantas e que a gente ouve a cada hora, que é uma coisa arrepiante. O Brasil e o mundo mandaram tantos donativos para cá que ficará difícil gastar tudo, mas alguém fica com muita coisa no meio do caminho. Sei de um abrigo onde há mais de mil sabonetes amontoados numa sala, mas que a pessoa que coordena o abrigo não dá sabonete para determinado abrigado que dele necessita, porque não lhe tem simpatia pessoal. E eu sei bem o quanto esse desabrigado é útil ao seu abrigo; como trabalha, ajuda, limpa, prepara comida ... que será que leva essa chefia de abrigo a ter tanta antipatia? Será que é porque não são da mesma etnia? Olhem os guetos se formando na Europa Brasileira!
As histórias são inúmeras, desde aquele sargento que, faz poucos dias, proibiu a carne para os adultos de determinado abrigo, liberando-a só para as crianças – quando todos sabem que há um congelador chapadinho de carne lá na cozinha, que veio das tantas doações que todo o país mandou. E as roupas sujas de menstruação que se deram às pessoas do abrigo tal, para que as usassem (nada havia sido salvo das suas casas), enquanto gente do Brasil inteiro mandava roupas novinhas novinhas... Começa a pergunta: quem ficou com tantas coisas? E um diretor de escola que resolveu tratar logo os abrigados como porcos: picou aipim com casca e tudo, e misturou um bocado de carne, e sem sal, sem tempero, sem preparo, cozinhou aquela gororoba e só não mandou servir em gamelões porque deve ter ficado com vergonha. E outro diretor de outra escola, que se sente o dono do abrigo (a escola é publica, construída com legítimo dinheiro do contribuinte, e o diretor é um funcionário público, com o salário pago com os impostos daquela gente que está lá desvalida) e que não permite coisas básicas, como pais que vêm de longe para saber a sorte dos filhos, e sequer podem entrar lá para falar com os mesmos... e um outro chefe de abrigo, que vergonhosamente faz com que cada abrigado seja revistado pelos soldados lá de plantão, mesmo que o abrigado tenha apenas ido até à esquina comprar um pão.
A lista das humilhações e falta de respeito é tão grande que nem pensaria em tentar coloca-la aqui. Mas taí uma amostra. E mesmo assim, esses trabalhadores da minha cidade terão que deixar o abrigo dia 30.01. Muitos e muitos já acabaram desistindo dos maus tratos e das humilhações e indo para a casa de amigos, ou voltando para as zonas de risco, assinando documentos em que se declaram auto-responsáveis pelo que vier acontecer, caso algo lhes acontecer nas zonas de risco. Eles têm que se ir, sumir; a vida nos abrigos tem que ser a pior possível, para que os moradores desistam, sumam das estatísticas – é bem diferente construir mil casas do que cinco mil casas – sobra um dinheirão para os bolsos não sei de quem.
Pois é, gente, deve ser por aí. Sei de algumas coisas: o Governo Federal colocou 1 BILHÃO e 700 milhões de reais à disposição dos atingidos – é um dinheiro ENORME. Sei que tal dinheiro abrange, também, construção de pontes, rodovias e correlatos, mas sobra MUITO dinheiro para construir casas para os nossos trabalhadores. Parte será emprestada através de financiamentos, mas parte também será repassada a fundo perdido. E nada se faz.
E o dinheiro que o santo povo brasileiro tirou do seu bolso, do seu contadinho, e mandou para cá? Tenho cá anotado o nr das contas:
BESC Blumenau – Ag. 003 – conta 400.000-3
Banco do Brasil Blumenau – Ag. 095 – conta 400.000-5
Caixa Econômica Federal Blumenau – Ag. 411 – conta 80.000-0.
Cadê tal dinheiro? Era dinheiro para o povo, assim como as outras doações eram para o povo – e sei que tem gente jogando caminhão de doação em beira de estrada porque já não há onde guardá-la. E o meu povo, a minha gente trabalhadora e construtora de Blumenau, a comer lavagem de porco e a usar roupas sujas de menstruação e a não ter acesso a sabonetes, onde há muitos milhares esperando para serem usados?
E tem mais: semana que vem, dia 30.01.2009, rua dos abrigos.
Então ontem o povo foi para a praça, foi pedir explicações e justiça. Eu estava lá de três formas: como observadora, pois sou uma escritora; como militante dos Movimentos Sociais, e como desalojada também. Havia centenas de pessoas diante da prefeitura pedindo justiça, e o prefeito fez o que é de praxe em tais horas: sumiu, se escafedeu. Mas aceitou marcar uma audiência para a próxima terça.
Terça já vai ser dia 27, tão perto do dia 30! Será que é tudo uma questão de empurrar com a barriga? Sei que os nossos trabalhadores vivem grande indignação e não tem o porte de quem se humilha pedindo – a atitude daqueles homens, mulheres e crianças que constroem Blumenau era de digna solicitação de direitos, e eu estava lá e vi tudo. E também me lembro das tantas mensagens que recebi e dos tantos telefonemas que vieram até mim dizendo coisas assim: “Tirei o pouquinho que me era possível e depositei para Blumenau” ,“Depositei 20.000,00 reais para ajudar vocês”, e assim vai. O meu telefone, depois que voltou a funcionar, não parava de tocar: era gente solidária de todo o Brasil, e de Cabo Verde, e de Portugal, e de Londres, e da Irlanda...
Toda essa gente merece satisfação: desde aquele humilde baiano que vi na televisão, depositando o seu troquinho de quem ganha salário mínimo, até aqueles que fizeram grandes doações – como também os nossos trabalhadores, os mais espoliados dos espoliados, sem a menor perspectiva do que lhes vai acontecer.
É hora de obtermos respostas, e muito rapidamente. Eu, por exemplo, fiz meu cadastro de desalojada no dia 16.12.2008 – mais de mês, portanto. Deixei lá o endereço onde estou, o telefone, o endereço eletrônico – e até este momento nem uma vezinha alguém me disse a mínima coisa. Imagino que alguém ao menos deveria dizer: “há que esperar o final das chuvas para se fazer alguma coisa. A senhora, por favor, tenha paciência!” – mas nem isto.
Se não dão satisfação a mim, conhecida como escritora bocuda, que publica em diversos continentes, o que algum dia dirão aos trabalhadores que constroem esta cidade? Decerto dirão algo assim:
- Sai daqui! Passa! Ligeiro! Senão vai ter cadeia! Seus arruaceiros!
E aquelas pessoas que doaram, e doaram, e doaram... estava na hora de alguém contar como as coisas se passam.


Blumenau, 23 de janeiro de 2008.

O menino que flutuava

Era julho de 2006 e um pequeno menino tão lindinho quanto uma pintura de anjo flutuava como que no espaço, liberado que estava da força da gravidade. Ao seu redor havia uma mãe. Decerto que ela era ainda bastante jovem; decerto que o menino tinha traços de anjo porque se parecia com ela. Imagino como essa mãe estava desassossegada, assim cheia de ansiedades, mas sem saber direito quando aquele menino que flutuava irromperia de dentro dela para ocupar os seus braços. No desassossego que a dominava, decerto que ela já passara a ferro o enxovalzinho recém lavado que fizera para aquela criança; decerto que não conseguia parar quieta. Ouvi dizer que todas as mães, um pouco antes de darem à luz, ficam ansiosas e expectantes. Na sua ansiedade o instinto lhe falava, e lhe dizia que logo teria nos braços um menino (ou uma menina?) que faria diferença no mundo. Coração de mãe não se engana, e o instinto lhe dava a certeza sobre o ser especial que abrigava. E ela também sabia o quanto aquela sua criança seria amada na vida. Ansiosa, desassossegada, ela esperava. Alguma dor incerta, algum prenúncio de dor devia lhe dizer que o tempo de ter seu menino nos braços chegara. E, flutuante, o pequeno menino com traços de pintura de anjo também esperava. Já no outro dia estaria à mercê da força da gravidade; já no outro dia estaria sem aquele abrigo onde agora estava, mas teria arranjado outro: o dos braços da sua mãe. Tudo ainda era confuso e indistinto para ele: um menino assim pequenino ainda não sabe decidir, programar, tomar decisões.Um menino ainda tão pequeno só sabe de si que é tempo de nascer e de aprender a respirar e a sobreviver - ainda é o instinto que o comanda. Mas, no mundo líquido onde flutua, seus macios cabelos, que também estão flutuando, já cobrem a semente do cérebro privilegiado que terá; no seu peito, que é delicado quase como o peito de um passarinho, um pequenino coração que muito pulsará pela humanidade já bate violentamente. E, como todas as crianças do universo, no dia anterior ao seu nascimento, o instinto lhe diz que será muito amado. E ele terá a sorte de ser do grupo privilegiado, que terá amor, carinho, comida, mãos protetoras e amparo até tomar o rumo do seu caminho. Muitas e muitas outras crianças que nascerão no dia seguinte não terão a mesma sorte. Isto, acima, é o que era para ser, e foi escrito faz bastante tempo para um menino de verdade que nasceu de verdade e tornou-se grandioso de verdade, e faz gente muito feliz de verdade. Vamos ver agora o que aconteceu de verdade em julho de 2006, no Líbano, quiçá na Palestina:


O menino que flutuava II
Julho de 2006, e a loucura tomava conta do mundo, mas mesmo assim aquela mãe carregava dentro de si o tesouro que era aquele menino com frêmitos de esperança no Futuro dele. Ela vivia no Líbano, mas a mesma história poderia ter sido igual em diversos pontos do mundo. Sua terra estava sendo duramente castigada por mísseis invasores, mas sabe como é, sempre existe a Esperança - até que um dos mísseis derrubou a parede de sua casa e tirou-lhe, dentre tantas outras coisas, a vida. Vizinhos e amigos sobreviventes acudiram-na, socorreram-na, mas ela já tinha morrido. Então era mister salvar o menino que ainda estava dentro dela, e todos se apressaram a fazê-lo. Alguém bateu a foto daquele salvamento, mas já era tarde. Estilhaços haviam entrado na sua barriga que abrigava o menino, e ele também estava morto, com profundo corte nas costas que nunca se agasalhariam nos braços da mãe que também já não existia, que nunca se encostaria numa carteira de escola, que nunca seria o Ser Especial do qual era promessa. Está aí acima a foto, ela diz tudo. O menino que flutuava agora está enterrado debaixo da terra. Por quanto tempo vamos ficar indiferentes?
Blumenau, 24 de Julho de 2006.

O Homem do Pôr-do-Sol e das Borboletas Brancas

(Para Adenilson Teles dos Santos)



Dia 31 de dezembro de 2006, Chaco Paraguaio, hora do pôr-do-sol. É assim que eu quero lembrar-te, meu amigo, no calor daquele Chaco e daquele dia, as janelas do ônibus abertas ao máximo, o vento entrando por elas e querendo nos refrescar, e tua franjinha de seda voando com o vento, a fascinação pela beleza daquele último sol do ano a te acender os olhinhos de estrelas, a máquina fotográfica na mão...

O pôr-do-sol no Chaco Paraguaio é uma das coisas mais bonitas de se ver no mundo – bem como a lua cheia, quando nasce lá, toda alaranjada, como já a vira no passado. Mas aquela que estava chegando era noite de Ano Novo, e não noite de lua, e então havia que apreciar até o último momento o mergulho daquele último sol do ano por detrás do deserto verde que é o Chaco, aquela enorme planície que um dia já fora mar e que ainda é salgada, mas onde incontáveis plantas se adaptaram ao sal e formam um sistema único no mundo, que vai desde o mais fino capim até às grandes árvores barrigudas, que armazenam grande quantidade de água nas suas barrigas para os tempos de grandes secas... Em nenhum outro lugar do mundo existe uma vegetação assim, e era bem lá dentro do Chaco, naquela incipiente noite de Ano Novo que viajávamos, e em nenhum momento me passou pela cabeça que aquele seria o último Ano Novo para ti, meu amigo dileto, e que teus olhinhos de estrelas já não se acenderiam contra a luz do pôr-do-sol em outra virada de ano!
Parece mentira pensar nisto, mas aquele era o último Ano Novo do meu amigo Adenilson Teles, e eu estava tendo o privilégio de estar ali, junto, enquanto o sol se punha e ele ficava de pé no ônibus, a pequena máquina fotográfica junto ao rosto, o curto cabelo de seda voando ao vento, aquela postura de rapaz comportado que o caracterizava se escorando nos encostos dos bancos antigos daquele ônibus antigo, a perseguir o último sol de 2006 para conseguir as melhores fotos possíveis.
Choro, choro muito, agora, quando lembro, mas é assim que quero lembrá-lo, solto e livre dentro do vento, a máquina fotográfica sendo erguida em outros ângulos enquanto o sol teimava em se ir e incendiava todo o horizonte, a franjinha de seda voando, seu rostinho tão bonito todo franzido no esforço do jornalista profissional que não podia perder de registrar a beleza incomensurável daquele pôr-do-sol – só agora, que já faz uma semana que tu te foste, é que volto a pensar de novo, e faço as contas de como a minha vida estava entrelaçada com a tua! E não só a minha: ontem, depois da missa de sétimo dia, fomos, muitos amigos, a um bar, e quando eu disse tal coisa, todos os outros também a disseram: como as nossas vidas estavam entrelaçadas com a tua, meu querido Teles, como cada um de nós precisava tanto de ti, dependia tanto de ti!
Apesar de querer sempre te lembrar na liberdade do vento dentro do Chaco Paraguaio, outras lembranças também vêm, e não há como não te lembrar como alguém onipresente nas nossas vidas, sempre com aquele jeito de bom moço, o porte empertigado atrás de todas as notícias e todos os ângulos, o passinho ágil que não o deixava perder nada, trilhando os caminhos da dignidade e da cidadania, sempre pronto para ajudar a todos, sempre cordial, atencioso e brincalhão ao telefone, sempre pronto a escrever o texto que era necessário naquele momento, sempre pronto a fotografar o evento que aparecesse, sempre do lado do mais pobre, do mais desprotegido, do mais necessitado - ah! meu querido amigo que não faltava em nada do que houvesse em cada vila, em cada assentamento, em cada ocupação – e que estava sempre pronto a estudar mais um pouco de teoria e ir observar o mundo todo por aí! Um ano antes daquele último pôr-do-sol de 2006 preparávamos para, via Roraima, irmos ao Fórum Social Mundial de Caracas/Venezuela – e antes estivemos nos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre – e nos primeiros dias deste ano no qual eu ainda estou vivendo adentramos à Bolívia, em encantada região que não é assim tão distante de La Higuera, e havia tanto verde, e tantos lírios do brejo muy floridos e com tanto perfume que dentro do nosso ônibus a gente se inebriava com aquele aroma que atraía milhares, milhões de borboletas brancas, e tu, emocionado,olhavas e nem fotografavas, pois ficavas pensando que decerto o Che passara por ali... senão, como tanto perfume e tantas borboletas? Meu Teles querido, decerto aquelas tantas borboletas brancas e aquele perfume de lírios do brejo te esperavam nos longos quilômetros daquele primeiro dia de Bolívia como numa saudação, porque há seres que são mágicos e sabem quando alguém não vai voltar para aquele lugar... Ah! Meu amigo tão querido, também é bom te lembrar assim, os olhinhos de estrelas fascinados por aquelas borboletas brancas, o queixo apoiado na mão de cotovelo na janela cheia de vento...
Há que chorar, sim, ao lembrar coisa tão doloridamente doce e dura, porque eu não me conformo de que tenhas ido, meu amigo querido, e eu sei que foste mesmo porque fui lá naquele velório onde parecias dormir tranqüilamente, o rostinho bonito suave e descansado, só que a franjinha de seda não voava ao vento, como quero te lembrar sempre lá naquele dia no Chaco...
Ah! Teles, ah! Teles, nunca mais a vida será a mesma. Lembro das fotos de passarinho que me mandavas, e das outras, algumas das quais até botei na parede da sala da minha casa, eu desfilando junto aos palestinos, desfilando com a bandeira do Iraque – estavas sempre atento a tudo, principalmente a quem sofria e a quem era solidário, e então me aparecias com tais fotos que nunca teria tido se no mundo não tivesse nascido, um dia, um menino que viera para fazer toda a diferença, e nenhum de nós que te conhecíamos poderemos ser, de novo, como éramos antes que entrasses nas nossas vidas.
A vida ficou muito mais difícil agora, meu amigo tão querido, tão difícil que, nós que ficamos, nem sabemos direito como agir.
Então quero te lembrar naquele pôr-do-sol do Chaco, a franjinha de cabelos de seda voando com o vento, teu jeito de bom moço a capturar o último sol do ano na máquina fotográfica, o deslumbrado encanto com o mundo amplo daquele lugar que um dia fora mar, o peito aberto para a emoção e para a vida.
Não dá para te dizer adeus, meu amigo! Tu vais estar sempre tão aqui junto de nós do mesmo jeito que estavas antes, e eu sempre vou fazer de conta que te telefono e pergunto: “Achas que posso botar tal frase no texto tal?” e outras coisas assim, e em todas as tardes de véspera de Ano Novo da minha vida vou te ver, de novo, os cabelos de seda ao vento, a ânsia de captar aquela beleza toda numa fotografia, e vou me lembrar do teu maravilhamento com as borboletas brancas da Bolívia, e pensar na tua lealdade, e na tua coragem (que vou contar num outro texto), e no entrelaçamento da tua vida com a minha, e vou chorar sempre quando a saudade vier, como agora, pois sei tão bem, tão bem, que esta é daquelas saudades raras, saudade que nunca irá passar...

Blumenau, 04 de Novembro de 2007.

A Borboleta Azul

A borboleta maravilhosamente azul morria na calçada, enquanto eu vinha arrastando o meu cansaço extremo. Comovi-me com a mocinha que não se conformava com o desapego à vida por parte da borboleta – afinal, cresci numa rua onde todas as crianças criavam borboletas desde que eram pequenos ovinhos em folhas de couve, e aprendera uma porção sobre elas. Parei para consolar a mocinha:
- Ela agora vai morrer. É assim mesmo. Já deve ter posto seus ovos, e agora vai morrer.
Não é impossível pensar-se que as borboletas possam sentir solidariedade – talvez aquela tenha sentido. O fato é que adejou mais uma vez suas asas maravilhosamente azuis, talvez seu último adejar. Consolei mais uma vez a mocinha:
- Elas vivem poucas horas...
Havia que me ir – uma fisioterapia que se alonga me aguardava um pouco adiante. Mas fui com aquele azul maravilhoso da borboleta dentro dos olhos, aquele último adejar de asas encantadas que vão se transformar em nada, em poeira de calçada... Mesmo assim andava rápido, havia o horário da fisioterapia, bem quando ... não podia ser verdade, decerto eu estava sonhando, assim como aquela borboleta sonhara à vista do seu primeiro sol, poucas horas antes... era verdade, não era? Já não importava o horário, nem a tristeza da mocinha, nem aquele adejar azul com que a borboleta se despedia – lá do outro lado da rua o mundo deixava de ter lógica, virava puro encanto, e creio que me quedei imóvel, paralisada, fascinada demais para qualquer outra coisa – quem vinha lá andando bem alheio ao fascínio que espalhava? Com a beleza e a leveza de um colibri que paira no ar meu Gato Malhado caminhava pela calçada do outro lado da rua, em habitat e horário estranhos para a circulação de colibris-gatos-malhados, uma surpresa total para aquela rua onde uma borboleta azul estava morrendo!
Inundei-me de luz e de alegria; vi um sol do qual já não lembrava; esqueci da dor, das dores, tantas – que importavam as dores se um colibri encantado adejava pela rua onde uma borboleta azul morria? Meu Gato-Malhado-Colibri vinha sério, circunspeto, a ternura dos seus pêlos malhados de prata como que precisando de uma carícia, a leve camisa de fino tecido branco raiado de preto adejando também, como, um pouco antes, as asas da borboleta azul; seu cenho sobrecarregado por tantos cansaços como que pedindo um refrigério; o peito amplo parecendo frágil naquela rua em que a borboleta morria – que poderia eu fazer por ele, para alisar-lhe as rugas da testa, o peso das preocupações, as mágoas tantas, acumuladas sabe-se lá desde quando, talvez desde os tempos em que andava a caçar estrelas em noites de satélites?
Eu não podia fazer nada além de ficar olhando e ficar feliz – lembro-me que em algum momento pensei que aquela postura de estátua fascinada deveria ser constrangedora, e então procurei a tênue proteção de um poste de cimento – o que é que se faz, em horas mágicas assim, em que borboletas azuis desistem da vida e encantados colibris adejam com toda a leveza por calçadas que até então não tinham passado de calçadas comuns? Não havia o que fazer além de ficar amando silenciosamente aquele Gato Malhado que se ia, ficar a olhá-lo até ele sumir na distância, o coração disparado de alegria. Mais tarde, depois da fisioterapia, quando voltei pelo mesmo caminho, fui haurindo em grandes haustos o ar daquela rua, pois ele estava cheio de perfume de flor. Também! Uma rua assim como aquela nunca mais será a mesma, depois da borboleta e do Colibri adejante terem estado ali assim ao mesmo tempo – pena que a borboleta morreu, e que do Colibri só ficou o perfume!

Blumenau, 28 de fevereiro de 2008.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Sobrevivência – as Capivaras

Apresentamos hoje mais uma bela crônica da escritora e historiadora, e Colunista Urda Alice Klueger, que nos brinda falando sobre as capivaras as margens do Ribeirão Garcia, na Rua Hermann Huscher.
"Histórias de nosso cotidiano":
Por Urda Alice Klueger
Não sou bióloga; portanto, não sei bem como funciona a vida das capivaras. Na minha condição de humana fica difícil saber algumas coisas – talvez se eu fosse um inseto, quiçá um réptil ou outro animal, soubesse mais, mas como pessoa não-bióloga, só sei das capivaras o que fica visível para todo o mundo: que gostam de comer plantas bem verdes; que gostam de nadar e se banhar em boas águas; que tem famílias e chefes de clãs que cuidam muito dos seus subordinados – provavelmente, como tantas outras espécies, são capazes de morrer por seus gordos filhotinhos.

Faz dez anos que moro no mesmo lugar que antes era tão lindo, e sempre tive consciência da presença de capivaras morando lá nos fundos do meu condomínio, abrigadas no pouco de mata que por ali vicejava, tomando banho de rio e pastando de tardezinha nos pequenos prados verdes, de florinhas amarelas, que deixavam aquele lugar um encanto.
Faz ano e meio, no entanto, que passei a ter um cachorrinho chamado Atahualpa(foto), um filhotinho que lá no começo tinha oitocentos gramas, e que hoje beira os dez quilos – indo passear três vezes por dia com o meu filhote fez com que eu passasse a ter um contato muito maior com as minhas vizinhas capivaras.
Faz um ano e meio e aquela família tinha quinze membros, que iam desde o chefão até sempre alguns bebês, passando por rechonchudos adolescentes e diversos adultos machos e fêmeas, todos sob a guarda atenta do tal chefão, que nunca perdia nenhum movimento da sua turma, enquanto ela pastava as florinhas amarelas das plantas verdes dos pequenos prados próximos. Meu cachorrinho cresceu latindo naquele chefão que devia pesar lá seus sessenta ou oitenta quilos, e que nunca deu a mínima para aquela nisca de vida que ficava por ali se esganiçando e treinando sua vozinha de filhote.
Atenta ao que ocorria naqueles vizinhos, vi a família crescer: sei perfeitamente que em novembro, antes da Catástrofe das Águas, havia vinte e três capivaras morando nos verdes das cercanias do meu condomínio, vinte e três pacíficos enormes roedores que vinham de tardinha pastar nos pradinhos verdes, e que não davam a mínimo se um turista resolvia parar e ficar a filma-las por uma hora inteira.
Então, veio a Tragédia, e o mundo endoidou. Diante do meu prédio o morro se derretia e trazia abaixo, no seu derretimento, barreiras, mata e grandes casas que caíam aqui embaixo, e o que acontecia era tão terrível que mais tarde eu só me consolaria pensando que no Iraque e na Faixa de Gaza era bem pior. Sei que tínhamos os olhos pregados naquela catástrofe de tal modo, que em nenhum momento eu lembrei de olhar para o fundo do prédio, lá onde moravam as capivaras. E lá a coisa também foi muito feia, e só agora tenho aquilatado quanto, quando vejo as marcas da água suja do rio acima da linha do alto das janelas das casas mais ribeirinhas, os destroços por toda a parte ... e sinto a falta das capivaras.
Teriam morrido, todas elas, sob as pancadas das lajes de casas, portas de geladeiras e tantos outros destroços que flutuaram e foram arrasando tudo à sua passagem? Teriam sido arrastadas junto com as águas, para lugares tão distantes que depois não souberam mais voltar? Alguma sobrevivera em distante margem do rio, apavorada de susto e totalmente solitária? Ou todos aqueles animais queridos perderam a vida de uma vez só, e já não teríamos, nunca mais, capivaras como vizinhas?
Minha indagação durou seis meses. Por meio ano meu coração latejava de ausência a cada vez que andava ali por perto onde tinha sido o domínio delas, naquelas terras estragadas por barreiras e por sobras de aterros criminosos, tão pouquinhos, agora, o resto de pastinhos verdes onde começam a renascer as florinhas amarela... Por meio ano meu coração doeu de tanta falta de saber das minhas capivaras, e já me convencera que todas tinham morrido. Noutro dia, no entanto, vi que uma capivara passara por ali – havia um montinho de dejetos na beira do pouco capim, deixado por um animal daqueles. E depois de mais alguns dias, de novo vi as marcas... Então, faz pouquinhos dias, e lá estava uma capivarona solitário a me olhar dolorosamente, como quem diz:
- Cadê a minha família, meus filhotinhos, meus primos, meus amigos? Tu tens aí o teu cachorrinho e um milhão de outras pessoas – a mim, já não me sobra ninguém...
Fui embora chorando. Será aquela uma capivara conhecida (elas se parecem tanto!) ou será alguma que anda rio acima e rio abaixo, procurando para ver se em algum lugar lhe restou alguma companhia, algum parente, quem sabe um ombro marrom e peludo onde chorar, depois de tanta desgraça? Não há como saber – o que sei é que reapareceu uma, e por mais triste que seja ver sozinho aquele animalzinho que costuma viver em complexas famílias, agora já há um, de novo... Embora as autoridades não reconstruam nada e esta cidade continue parecendo uma cidade bombardeada, a Natureza anda fazendo a sua parte, e eu estou aqui, na torcida para que logo aquele bichinho arranje um amigo, um companheiro...
Ah! Quando poderemos nos livrar daquele pesadelo das Águas de Novembro de 2008! Está sendo tão difícil!
Blumenau, 16 de Maio de 2009.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

RECONSTRUÇÃO - As trepadeiras

Agora elas estão por toda a parte, como se tivessem sido espargidas por alguma misteriosa fada que quisesse refazer todo o desfeito. Talvez estivessem por aí antes, mas abafadas, escondidas, quiçá em forma de sementes, ou sufocadas por outras ervas... não dá para saber. O fato é que agora elas se assenhoraram de grande parte desta terra que dismilinguiu com a Desgraça das Águas de Novembro, e pela forma incansável e poderosa como estão a trabalhar, a produzir uma rede de proteção para a aridez do oco dos morros de terras muito velhas de que é formada esta minha região, me impressionam profundamente, pois vejo nelas o grande batalhão de apoio que poderá nos fazer ir esquecendo, ir esquecendo ... quem sabe um dia a gente conseguirá não se lembrar mais.
Falo das trepadeiras, essas viventes que surgiram de onde não estavam, que surgiram sem que tivéssemos lembrança delas, que hoje com um lacinho cá, amanhã com um enroladinho lá, vão lançando suas gavinhas por sobre as marcas das desgraças que vivemos e formando toda uma rede, todas muitas redes por quase todos os lados, cobrindo montes de terras áridas e secas que sobraram do derretimento dos morros, e se enrolando por tudo, e reverdecendo os lugares que no passado eram tão verdes!
É bem verdade que continuam vermelhas, assim como se fossem de sangue coagulado, as profundas feridas que a Desgraça abriu nos morros da minha cidade, feridas de onde escorreram os mares de lama que ceifaram vidas e sonhos e alegrias, e que fizeram com que tantas aviltâncias humanas viessem à tona, como em tantos fatos acontecidos no tratamento com os flagelados ou no sumiço de donativos que a boa alma das gentes mandou de tantos lugares... Há feridas de todos os tamanhos, e há aquelas onde o derretimento dos morros deixou feridas abertas em tal ângulo que nem o menor capinzinho conseguiu, ainda, se fixar nelas para tentar esconde-las, e talvez nem na próxima Primavera, ou na outra, tal milagre da Natureza consiga acontecer para que a gente possa se lembrar menos...
Valentes onde conseguem ir e se agarrar, no entanto, as trepadeiras estão fazendo um trabalho silencioso e único, talvez o maior bálsamo que os nossos corações macerados precisassem depois de tantas amarguras.
Elas são diversas, desde umas bem miudinhas, de folhinhas de nada e formosinhas flores azuis, até àquelas de flores roxas e umas maiores, de baraços e folhas maiores, que ao anoitecer abrem grandes floronas brancas, tão grandes que lembram igrejas pequenas, com pequenos sinos de um palmo de boca que marcam os acontecimentos de pequenas povoações. E estão por todos os cantos, às vezes combinadas umas com as outras no mesmo espaço, a cobrir restos de barreiras áridas, barrancos desbarrancados, árvores entortadas ou de cabeça para baixo, pedaços de armários e sofás cobertos de lama, os mais diferentes signos da Grande Desgraça que como que partiu nossas vidas ao meio e levou de roldão tanta gente e tantos animais que nunca voltarão. Elas aparecem ao redor de esses tantos signos e começam a tecer sua teia, a lançar gavinhas até onde conseguem, a se enrolar por tudo, como que a encorajar os vegetais que vegetam ali por perto, e é como se lhes acenassem e lhe dissessem baixinho: “Venham, podem vir! Estamos a lhes garantir sombra, quiçá um primeiro cadinho de humus para alimenta-los adiante, quando criarem coragem de subir este montículo de barreira de terra tão árida, este recheio de morro que, faz perto de meio ano, desceu aqui ou acolá e causou tanta desgraça. É tempo de fazermos o recomeço, de ao menos escondermos as tantas barbaridades!”.
Anunciadoras da Esperança, as trepadeiras estão por todos os lados, agora, enrolando seus baraços e baracinhos em todos os pontos e coisas onde conseguem se enrolar, criando uma antecipada Primavera para as nossas almas sequiosas de voltar à normalidade. Um ano não acabou, outro não começou, o mundo desmilinguiu, e parecia que nada poderia normaliza-lo de novo. E então aparecem essas mágicas trepadeiras que eu não esperava, fazendo um trabalho único em tantas feridas daqui ao meu redor. Quem diria, tão fraquinhas, baracinhos de nada, folhinhas humildes, só as flores a se fazerem respeitar – e são elas as que estão trazendo o bálsamo para o meu coração tão magoado e o verde de volta às feridas deste pedaço do planeta. Obrigada, minhas queridinhas, por toda a emoção que me causam.

Blumenau, 07 de Maio de 2009.


Urda Alice Klueger
Escritora

sexta-feira, 17 de abril de 2009

EUROPA BRASILEIRA

Vi uma reportagem outro dia sobre os medos das crianças. Primeiro falaram do medo que tinham as crianças do passado, como eu o fui um dia: crianças do meu tempo temiam a Bruxa Malvada, o Bicho-Papão, o Saci-Pererê, e outros relacionados. Na minha infância vi uma única pessoa ameaçar criança com a polícia: era a Dona Honória Farias de Amorim, mãe da minha madrinha, douta mulher que muito sabia da vida e que decerto previa o futuro. Lembro da reação que tive, lá pelos anos sessenta, quando a vi fazer tal ameaça a primeira vez: claro que não levei a sério, achei até engraçado, pois fora criada como um ser humano que deve respeitar a polícia, que considera a polícia como alguém que vai garantir o respeito e amparar o direito de cada um.
Então, vi a reportagem e fiquei de queixo caído: as crianças de hoje já não temem o Bicho Papão e seus correlatos – as crianças de hoje têm medo é da polícia. O repórter trabalhou com crianças do Rio de Janeiro, cidade muito grande, e tanto as crianças dos bairros ricos quanto as crianças da favela tinham medo da polícia, sendo que essas últimas tinham medo, além do mais, de um personagem que eu não conhecia até então: o Caveirão, que é um blindado que adentra nas favelas e, sem nenhuma dúvida, deixa as crianças aterrorizadas. Lembro da vozinha trêmula de uma menininha de uns três anos, dizendo, assustada, do seu medo:
- O Caveirããão...
Bem, isso era lá no Rio de Janeiro, cidade enorme, onde os filhos dos ricos consomem tanta droga que permitem que haja um tráfico dela, sobre a qual se jogam todas as culpas dos problemas sociais não resolvidos. Eu vivia em outro mundo, na cidade de Blumenau/SC, também alcunhada de “a loira Blumenau”, ou vulga “Europa Brasileira”, lugar onde a polícia decerto era bem como me tinham ensinado na infância (excetuando a Dona Honória), onde jamais haveria violência ou Caveirão, onde as crianças podiam continuar acreditando nas malvadezas da Bruxa Malvada sem se preocupar com as maldades humanas. Pelo menos é esta a imagem que o poder público fica vendendo para turistas incautos, que não fazem a menor idéia que só falta se soltar caveirões até pelas ruas centrais da cidade.
A vida tem me ensinado que não é bem assim, no entanto. Tenho presenciado tantas e tais barbaridades da parte da polícia da Europa Brasileira, que já não há como continuar acreditando nas verdades da minha infância. Poderia me estender sobre diversos acontecimentos vistos no coletivo, mas vou me ater a dois fatos da minha insignificante vida pessoal, mas que dão bem a medida de como andam as coisas.
Eu tenho um cachorro, e tomo o maior cuidado para mantê-lo bem, com saúde, bem alimentado, feliz da vida. Jamais o deixaria preso dentro do meu carro ao sol, sofrendo calor e angústia, mas naquele dia caía uma chuvinha fina, estava fresco, e achei que ele poderia me esperar uns dez minutos no estacionamento de um restaurante, enquanto eu deglutia rapidamente algo a guisa de almoço, acostumada que fui pela vida a comer muito depressa. Achei uma vaga para estacionar bem ao lado de um carro da polícia militar, e fiquei contente com tal coisa. Mas foi eu sair do meu carro e um jovem policial militar veio buscar o carro dele. Educadamente, falei com ele:
- Pôxa, que pena! Estava feliz porque meu cachorro ia ficar protegido perto do seu carro – sabe, sempre temo que roubem meu cachorro, pois deixo as janelas abertas pela metade... Que pena que você vai embora!
Meu, ao invés da deferência que eu estava dando ao garoto, parecia que eu era uma abelha que o picara! Saiu para cima de mim sem nenhum respeito sequer pela minha idade, esbravejando por ser ele uma autoridade e eu estar querendo mandar nele, essas baixarias que o poder da força ensinam rapidamente às pessoas que não sabem o que é poder real – e acrescentou:
- E a senhora trate de cuidar bem do seu cachorro, senão eu ainda vou é levá-la presa por maus-tratos aos animais!
Europa Brasileira, sem mais nem menos! Fascismo declarado, nas minhas contas. O garoto era ainda bastante jovem – decerto repetia o que tinham lhe ensinado nos cursos que fizera para ser policial. Tratei de botar o rabo no meio das pernas e ir almoçar às pressas, como pretendia, cuidando para não amargar uma cana caída do céu, sem motivo nenhum.
Daí vou contar o episódio 2, acontecido hoje de manhã. Dei-me conta, ontem, que sumira minha carteira de motorista. Hoje cedo fui à delegacia da polícia civil mais próxima registrar tal fato. Enquanto esperava, ouvia algo que o comissário que estava fazendo registros falava com outro homem que registrava alguma coisa. Não sei bem do que se tratava, mas uma das queixas daquele cidadão era de que tinham quebrado a janela dele. Houvera uma festa ou reunião na casa do vizinho e tinham quebrado a janela dele, ele não sabia bem quem fora. Isso deixava o comissário espumando de raiva:
- Como é que quebram a sua janela e o senhor não sabe quem foi? Quem estava lá? Isto aqui é uma delegacia e são necessários dados precisos, não estamos aqui para brincadeiras, etc. etc. etc.
Não adiantava o homem dizer que havia no local diversas pessoas pois o policial queria o nome do responsável. Pegou um nome qualquer dentre meia dúzia que o homem falou das pessoas que participavam da festa, e fico pensando que, caso haja investigação, aquele sujeito vai ser culpabilizado por ter quebrado uma janela, mesmo que seja inocente. Está cheio de casos assim por aí tudo – inclusive lá naquele país chamado Estados Unidos, onde há muita gente que pensa que só há ricos, felizes e justos.
Então chegou a minha vez. Era coisa pouca, só dizer que havia extraviado minha carteira de motorista – mas levei uma bronca! Se eu que era uma mera extraviadora de meu próprio documento estava sendo tratada assim, aos berros e na ofensa, como será que são tratados os bandidos de verdade? E olhem que sou loira, de olhos azuis, bem o biotipo do que se espera ver na Europa Brasileira – como tratarão a outros biotipos, como será tratado um negro que ali adentrar? E dessa vez não se tratava de um novato – o comissário era bem veterano!
Qual era a argumentação do suj... (ôps, posso ser presa por desacato à autoridade – é melhor usar comissário) para ficar me berrando? Que havia que cumprir a lei, que havia que ir para casa e largar o carro e só andar de ônibus a partir daquele momento, pois do contrário seria multada, presa, teria o carro preso, responderia a processos, etc. etc. etc. – pois havia que cumprir a lei, a lei existia para ser obedecida, etc. etc. etc. – bem como se eu fosse uma criminosa legítima, e berro de lá e berro de cá, e eu bem quieta, ouvindo com humildade, como convêm a quem não quer amargar uma cadeia sem motivo. Numa brecha do berreiro, arrisquei, voz suave:
- Mas não cometi nenhum crime... e o síndico do meu prédio, que botou abaixo a mata ciliar por detrás do condomínio, a coisa fica assim mesmo?
O suj.. (quer dizer, comissário) tinha outro tanto de berros para o meu síndico, mas continuava me ameaçando, e então aproveitei outra brecha:
- E o Jader Barbalho, que roubou todos aqueles milhões?
O homem engasgou. Disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, mas bem humildemente eu disse que tinha, pois lá se iam quase dez anos e nada acontecia ao ladraozão...
Sei que foi horrível ter ido à polícia comunicar um extravio de documento. Se não tivesse consciência bem firme da minha própria integridade, acho que nada mais me convenceria de que eu não era uma criminosa de primeira marca.
É assim a famosa Europa Brasileira onde vivo. Qualquer dia começam a passar aí pela rua os Caveirões, e nenhuma criança mais vai temer Bicho Papão nenhum! Se Jader Barbalho merece mais consideração que uma humilde perdedora de uma carteira de motorista, se com Jader Barbalho comissários engasgam por não ter poder sobre, o que resta a nós, pobres humanos comuns?

Blumenau, 29 de outubro de 2008.


Urda Alice Klueger
Escritora e historiadora