terça-feira, 26 de maio de 2009

Sobrevivência – as Capivaras

Apresentamos hoje mais uma bela crônica da escritora e historiadora, e Colunista Urda Alice Klueger, que nos brinda falando sobre as capivaras as margens do Ribeirão Garcia, na Rua Hermann Huscher.
"Histórias de nosso cotidiano":
Por Urda Alice Klueger
Não sou bióloga; portanto, não sei bem como funciona a vida das capivaras. Na minha condição de humana fica difícil saber algumas coisas – talvez se eu fosse um inseto, quiçá um réptil ou outro animal, soubesse mais, mas como pessoa não-bióloga, só sei das capivaras o que fica visível para todo o mundo: que gostam de comer plantas bem verdes; que gostam de nadar e se banhar em boas águas; que tem famílias e chefes de clãs que cuidam muito dos seus subordinados – provavelmente, como tantas outras espécies, são capazes de morrer por seus gordos filhotinhos.

Faz dez anos que moro no mesmo lugar que antes era tão lindo, e sempre tive consciência da presença de capivaras morando lá nos fundos do meu condomínio, abrigadas no pouco de mata que por ali vicejava, tomando banho de rio e pastando de tardezinha nos pequenos prados verdes, de florinhas amarelas, que deixavam aquele lugar um encanto.
Faz ano e meio, no entanto, que passei a ter um cachorrinho chamado Atahualpa(foto), um filhotinho que lá no começo tinha oitocentos gramas, e que hoje beira os dez quilos – indo passear três vezes por dia com o meu filhote fez com que eu passasse a ter um contato muito maior com as minhas vizinhas capivaras.
Faz um ano e meio e aquela família tinha quinze membros, que iam desde o chefão até sempre alguns bebês, passando por rechonchudos adolescentes e diversos adultos machos e fêmeas, todos sob a guarda atenta do tal chefão, que nunca perdia nenhum movimento da sua turma, enquanto ela pastava as florinhas amarelas das plantas verdes dos pequenos prados próximos. Meu cachorrinho cresceu latindo naquele chefão que devia pesar lá seus sessenta ou oitenta quilos, e que nunca deu a mínima para aquela nisca de vida que ficava por ali se esganiçando e treinando sua vozinha de filhote.
Atenta ao que ocorria naqueles vizinhos, vi a família crescer: sei perfeitamente que em novembro, antes da Catástrofe das Águas, havia vinte e três capivaras morando nos verdes das cercanias do meu condomínio, vinte e três pacíficos enormes roedores que vinham de tardinha pastar nos pradinhos verdes, e que não davam a mínimo se um turista resolvia parar e ficar a filma-las por uma hora inteira.
Então, veio a Tragédia, e o mundo endoidou. Diante do meu prédio o morro se derretia e trazia abaixo, no seu derretimento, barreiras, mata e grandes casas que caíam aqui embaixo, e o que acontecia era tão terrível que mais tarde eu só me consolaria pensando que no Iraque e na Faixa de Gaza era bem pior. Sei que tínhamos os olhos pregados naquela catástrofe de tal modo, que em nenhum momento eu lembrei de olhar para o fundo do prédio, lá onde moravam as capivaras. E lá a coisa também foi muito feia, e só agora tenho aquilatado quanto, quando vejo as marcas da água suja do rio acima da linha do alto das janelas das casas mais ribeirinhas, os destroços por toda a parte ... e sinto a falta das capivaras.
Teriam morrido, todas elas, sob as pancadas das lajes de casas, portas de geladeiras e tantos outros destroços que flutuaram e foram arrasando tudo à sua passagem? Teriam sido arrastadas junto com as águas, para lugares tão distantes que depois não souberam mais voltar? Alguma sobrevivera em distante margem do rio, apavorada de susto e totalmente solitária? Ou todos aqueles animais queridos perderam a vida de uma vez só, e já não teríamos, nunca mais, capivaras como vizinhas?
Minha indagação durou seis meses. Por meio ano meu coração latejava de ausência a cada vez que andava ali por perto onde tinha sido o domínio delas, naquelas terras estragadas por barreiras e por sobras de aterros criminosos, tão pouquinhos, agora, o resto de pastinhos verdes onde começam a renascer as florinhas amarela... Por meio ano meu coração doeu de tanta falta de saber das minhas capivaras, e já me convencera que todas tinham morrido. Noutro dia, no entanto, vi que uma capivara passara por ali – havia um montinho de dejetos na beira do pouco capim, deixado por um animal daqueles. E depois de mais alguns dias, de novo vi as marcas... Então, faz pouquinhos dias, e lá estava uma capivarona solitário a me olhar dolorosamente, como quem diz:
- Cadê a minha família, meus filhotinhos, meus primos, meus amigos? Tu tens aí o teu cachorrinho e um milhão de outras pessoas – a mim, já não me sobra ninguém...
Fui embora chorando. Será aquela uma capivara conhecida (elas se parecem tanto!) ou será alguma que anda rio acima e rio abaixo, procurando para ver se em algum lugar lhe restou alguma companhia, algum parente, quem sabe um ombro marrom e peludo onde chorar, depois de tanta desgraça? Não há como saber – o que sei é que reapareceu uma, e por mais triste que seja ver sozinho aquele animalzinho que costuma viver em complexas famílias, agora já há um, de novo... Embora as autoridades não reconstruam nada e esta cidade continue parecendo uma cidade bombardeada, a Natureza anda fazendo a sua parte, e eu estou aqui, na torcida para que logo aquele bichinho arranje um amigo, um companheiro...
Ah! Quando poderemos nos livrar daquele pesadelo das Águas de Novembro de 2008! Está sendo tão difícil!
Blumenau, 16 de Maio de 2009.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

RECONSTRUÇÃO - As trepadeiras

Agora elas estão por toda a parte, como se tivessem sido espargidas por alguma misteriosa fada que quisesse refazer todo o desfeito. Talvez estivessem por aí antes, mas abafadas, escondidas, quiçá em forma de sementes, ou sufocadas por outras ervas... não dá para saber. O fato é que agora elas se assenhoraram de grande parte desta terra que dismilinguiu com a Desgraça das Águas de Novembro, e pela forma incansável e poderosa como estão a trabalhar, a produzir uma rede de proteção para a aridez do oco dos morros de terras muito velhas de que é formada esta minha região, me impressionam profundamente, pois vejo nelas o grande batalhão de apoio que poderá nos fazer ir esquecendo, ir esquecendo ... quem sabe um dia a gente conseguirá não se lembrar mais.
Falo das trepadeiras, essas viventes que surgiram de onde não estavam, que surgiram sem que tivéssemos lembrança delas, que hoje com um lacinho cá, amanhã com um enroladinho lá, vão lançando suas gavinhas por sobre as marcas das desgraças que vivemos e formando toda uma rede, todas muitas redes por quase todos os lados, cobrindo montes de terras áridas e secas que sobraram do derretimento dos morros, e se enrolando por tudo, e reverdecendo os lugares que no passado eram tão verdes!
É bem verdade que continuam vermelhas, assim como se fossem de sangue coagulado, as profundas feridas que a Desgraça abriu nos morros da minha cidade, feridas de onde escorreram os mares de lama que ceifaram vidas e sonhos e alegrias, e que fizeram com que tantas aviltâncias humanas viessem à tona, como em tantos fatos acontecidos no tratamento com os flagelados ou no sumiço de donativos que a boa alma das gentes mandou de tantos lugares... Há feridas de todos os tamanhos, e há aquelas onde o derretimento dos morros deixou feridas abertas em tal ângulo que nem o menor capinzinho conseguiu, ainda, se fixar nelas para tentar esconde-las, e talvez nem na próxima Primavera, ou na outra, tal milagre da Natureza consiga acontecer para que a gente possa se lembrar menos...
Valentes onde conseguem ir e se agarrar, no entanto, as trepadeiras estão fazendo um trabalho silencioso e único, talvez o maior bálsamo que os nossos corações macerados precisassem depois de tantas amarguras.
Elas são diversas, desde umas bem miudinhas, de folhinhas de nada e formosinhas flores azuis, até àquelas de flores roxas e umas maiores, de baraços e folhas maiores, que ao anoitecer abrem grandes floronas brancas, tão grandes que lembram igrejas pequenas, com pequenos sinos de um palmo de boca que marcam os acontecimentos de pequenas povoações. E estão por todos os cantos, às vezes combinadas umas com as outras no mesmo espaço, a cobrir restos de barreiras áridas, barrancos desbarrancados, árvores entortadas ou de cabeça para baixo, pedaços de armários e sofás cobertos de lama, os mais diferentes signos da Grande Desgraça que como que partiu nossas vidas ao meio e levou de roldão tanta gente e tantos animais que nunca voltarão. Elas aparecem ao redor de esses tantos signos e começam a tecer sua teia, a lançar gavinhas até onde conseguem, a se enrolar por tudo, como que a encorajar os vegetais que vegetam ali por perto, e é como se lhes acenassem e lhe dissessem baixinho: “Venham, podem vir! Estamos a lhes garantir sombra, quiçá um primeiro cadinho de humus para alimenta-los adiante, quando criarem coragem de subir este montículo de barreira de terra tão árida, este recheio de morro que, faz perto de meio ano, desceu aqui ou acolá e causou tanta desgraça. É tempo de fazermos o recomeço, de ao menos escondermos as tantas barbaridades!”.
Anunciadoras da Esperança, as trepadeiras estão por todos os lados, agora, enrolando seus baraços e baracinhos em todos os pontos e coisas onde conseguem se enrolar, criando uma antecipada Primavera para as nossas almas sequiosas de voltar à normalidade. Um ano não acabou, outro não começou, o mundo desmilinguiu, e parecia que nada poderia normaliza-lo de novo. E então aparecem essas mágicas trepadeiras que eu não esperava, fazendo um trabalho único em tantas feridas daqui ao meu redor. Quem diria, tão fraquinhas, baracinhos de nada, folhinhas humildes, só as flores a se fazerem respeitar – e são elas as que estão trazendo o bálsamo para o meu coração tão magoado e o verde de volta às feridas deste pedaço do planeta. Obrigada, minhas queridinhas, por toda a emoção que me causam.

Blumenau, 07 de Maio de 2009.


Urda Alice Klueger
Escritora