Apresentamos hoje mais uma bela crônica da escritora e historiadora, e Colunista Urda Alice Klueger, que nos brinda falando sobre as capivaras as margens do Ribeirão Garcia, na Rua Hermann Huscher.
"Histórias de nosso cotidiano":
Por Urda Alice Klueger
Não sou bióloga; portanto, não sei bem como funciona a vida das capivaras. Na minha condição de humana fica difícil saber algumas coisas – talvez se eu fosse um inseto, quiçá um réptil ou outro animal, soubesse mais, mas como pessoa não-bióloga, só sei das capivaras o que fica visível para todo o mundo: que gostam de comer plantas bem verdes; que gostam de nadar e se banhar em boas águas; que tem famílias e chefes de clãs que cuidam muito dos seus subordinados – provavelmente, como tantas outras espécies, são capazes de morrer por seus gordos filhotinhos.
Faz dez anos que moro no mesmo lugar que antes era tão lindo, e sempre tive consciência da presença de capivaras morando lá nos fundos do meu condomínio, abrigadas no pouco de mata que por ali vicejava, tomando banho de rio e pastando de tardezinha nos pequenos prados verdes, de florinhas amarelas, que deixavam aquele lugar um encanto.
Faz ano e meio, no entanto, que passei a ter um cachorrinho chamado Atahualpa(foto), um filhotinho que lá no começo tinha oitocentos gramas, e que hoje beira os dez quilos – indo passear três vezes por dia com o meu filhote fez com que eu passasse a ter um contato muito maior com as minhas vizinhas capivaras.
Faz um ano e meio e aquela família tinha quinze membros, que iam desde o chefão até sempre alguns bebês, passando por rechonchudos adolescentes e diversos adultos machos e fêmeas, todos sob a guarda atenta do tal chefão, que nunca perdia nenhum movimento da sua turma, enquanto ela pastava as florinhas amarelas das plantas verdes dos pequenos prados próximos. Meu cachorrinho cresceu latindo naquele chefão que devia pesar lá seus sessenta ou oitenta quilos, e que nunca deu a mínima para aquela nisca de vida que ficava por ali se esganiçando e treinando sua vozinha de filhote.
Atenta ao que ocorria naqueles vizinhos, vi a família crescer: sei perfeitamente que em novembro, antes da Catástrofe das Águas, havia vinte e três capivaras morando nos verdes das cercanias do meu condomínio, vinte e três pacíficos enormes roedores que vinham de tardinha pastar nos pradinhos verdes, e que não davam a mínimo se um turista resolvia parar e ficar a filma-las por uma hora inteira.
Então, veio a Tragédia, e o mundo endoidou. Diante do meu prédio o morro se derretia e trazia abaixo, no seu derretimento, barreiras, mata e grandes casas que caíam aqui embaixo, e o que acontecia era tão terrível que mais tarde eu só me consolaria pensando que no Iraque e na Faixa de Gaza era bem pior. Sei que tínhamos os olhos pregados naquela catástrofe de tal modo, que em nenhum momento eu lembrei de olhar para o fundo do prédio, lá onde moravam as capivaras. E lá a coisa também foi muito feia, e só agora tenho aquilatado quanto, quando vejo as marcas da água suja do rio acima da linha do alto das janelas das casas mais ribeirinhas, os destroços por toda a parte ... e sinto a falta das capivaras.
Teriam morrido, todas elas, sob as pancadas das lajes de casas, portas de geladeiras e tantos outros destroços que flutuaram e foram arrasando tudo à sua passagem? Teriam sido arrastadas junto com as águas, para lugares tão distantes que depois não souberam mais voltar? Alguma sobrevivera em distante margem do rio, apavorada de susto e totalmente solitária? Ou todos aqueles animais queridos perderam a vida de uma vez só, e já não teríamos, nunca mais, capivaras como vizinhas?
Minha indagação durou seis meses. Por meio ano meu coração latejava de ausência a cada vez que andava ali por perto onde tinha sido o domínio delas, naquelas terras estragadas por barreiras e por sobras de aterros criminosos, tão pouquinhos, agora, o resto de pastinhos verdes onde começam a renascer as florinhas amarela... Por meio ano meu coração doeu de tanta falta de saber das minhas capivaras, e já me convencera que todas tinham morrido. Noutro dia, no entanto, vi que uma capivara passara por ali – havia um montinho de dejetos na beira do pouco capim, deixado por um animal daqueles. E depois de mais alguns dias, de novo vi as marcas... Então, faz pouquinhos dias, e lá estava uma capivarona solitário a me olhar dolorosamente, como quem diz:
- Cadê a minha família, meus filhotinhos, meus primos, meus amigos? Tu tens aí o teu cachorrinho e um milhão de outras pessoas – a mim, já não me sobra ninguém...
Fui embora chorando. Será aquela uma capivara conhecida (elas se parecem tanto!) ou será alguma que anda rio acima e rio abaixo, procurando para ver se em algum lugar lhe restou alguma companhia, algum parente, quem sabe um ombro marrom e peludo onde chorar, depois de tanta desgraça? Não há como saber – o que sei é que reapareceu uma, e por mais triste que seja ver sozinho aquele animalzinho que costuma viver em complexas famílias, agora já há um, de novo... Embora as autoridades não reconstruam nada e esta cidade continue parecendo uma cidade bombardeada, a Natureza anda fazendo a sua parte, e eu estou aqui, na torcida para que logo aquele bichinho arranje um amigo, um companheiro...
Ah! Quando poderemos nos livrar daquele pesadelo das Águas de Novembro de 2008! Está sendo tão difícil!
Blumenau, 16 de Maio de 2009.
"Histórias de nosso cotidiano":
Por Urda Alice Klueger
Não sou bióloga; portanto, não sei bem como funciona a vida das capivaras. Na minha condição de humana fica difícil saber algumas coisas – talvez se eu fosse um inseto, quiçá um réptil ou outro animal, soubesse mais, mas como pessoa não-bióloga, só sei das capivaras o que fica visível para todo o mundo: que gostam de comer plantas bem verdes; que gostam de nadar e se banhar em boas águas; que tem famílias e chefes de clãs que cuidam muito dos seus subordinados – provavelmente, como tantas outras espécies, são capazes de morrer por seus gordos filhotinhos.
Faz dez anos que moro no mesmo lugar que antes era tão lindo, e sempre tive consciência da presença de capivaras morando lá nos fundos do meu condomínio, abrigadas no pouco de mata que por ali vicejava, tomando banho de rio e pastando de tardezinha nos pequenos prados verdes, de florinhas amarelas, que deixavam aquele lugar um encanto.
Faz ano e meio, no entanto, que passei a ter um cachorrinho chamado Atahualpa(foto), um filhotinho que lá no começo tinha oitocentos gramas, e que hoje beira os dez quilos – indo passear três vezes por dia com o meu filhote fez com que eu passasse a ter um contato muito maior com as minhas vizinhas capivaras.
Faz um ano e meio e aquela família tinha quinze membros, que iam desde o chefão até sempre alguns bebês, passando por rechonchudos adolescentes e diversos adultos machos e fêmeas, todos sob a guarda atenta do tal chefão, que nunca perdia nenhum movimento da sua turma, enquanto ela pastava as florinhas amarelas das plantas verdes dos pequenos prados próximos. Meu cachorrinho cresceu latindo naquele chefão que devia pesar lá seus sessenta ou oitenta quilos, e que nunca deu a mínima para aquela nisca de vida que ficava por ali se esganiçando e treinando sua vozinha de filhote.
Atenta ao que ocorria naqueles vizinhos, vi a família crescer: sei perfeitamente que em novembro, antes da Catástrofe das Águas, havia vinte e três capivaras morando nos verdes das cercanias do meu condomínio, vinte e três pacíficos enormes roedores que vinham de tardinha pastar nos pradinhos verdes, e que não davam a mínimo se um turista resolvia parar e ficar a filma-las por uma hora inteira.
Então, veio a Tragédia, e o mundo endoidou. Diante do meu prédio o morro se derretia e trazia abaixo, no seu derretimento, barreiras, mata e grandes casas que caíam aqui embaixo, e o que acontecia era tão terrível que mais tarde eu só me consolaria pensando que no Iraque e na Faixa de Gaza era bem pior. Sei que tínhamos os olhos pregados naquela catástrofe de tal modo, que em nenhum momento eu lembrei de olhar para o fundo do prédio, lá onde moravam as capivaras. E lá a coisa também foi muito feia, e só agora tenho aquilatado quanto, quando vejo as marcas da água suja do rio acima da linha do alto das janelas das casas mais ribeirinhas, os destroços por toda a parte ... e sinto a falta das capivaras.
Teriam morrido, todas elas, sob as pancadas das lajes de casas, portas de geladeiras e tantos outros destroços que flutuaram e foram arrasando tudo à sua passagem? Teriam sido arrastadas junto com as águas, para lugares tão distantes que depois não souberam mais voltar? Alguma sobrevivera em distante margem do rio, apavorada de susto e totalmente solitária? Ou todos aqueles animais queridos perderam a vida de uma vez só, e já não teríamos, nunca mais, capivaras como vizinhas?
Minha indagação durou seis meses. Por meio ano meu coração latejava de ausência a cada vez que andava ali por perto onde tinha sido o domínio delas, naquelas terras estragadas por barreiras e por sobras de aterros criminosos, tão pouquinhos, agora, o resto de pastinhos verdes onde começam a renascer as florinhas amarela... Por meio ano meu coração doeu de tanta falta de saber das minhas capivaras, e já me convencera que todas tinham morrido. Noutro dia, no entanto, vi que uma capivara passara por ali – havia um montinho de dejetos na beira do pouco capim, deixado por um animal daqueles. E depois de mais alguns dias, de novo vi as marcas... Então, faz pouquinhos dias, e lá estava uma capivarona solitário a me olhar dolorosamente, como quem diz:
- Cadê a minha família, meus filhotinhos, meus primos, meus amigos? Tu tens aí o teu cachorrinho e um milhão de outras pessoas – a mim, já não me sobra ninguém...
Fui embora chorando. Será aquela uma capivara conhecida (elas se parecem tanto!) ou será alguma que anda rio acima e rio abaixo, procurando para ver se em algum lugar lhe restou alguma companhia, algum parente, quem sabe um ombro marrom e peludo onde chorar, depois de tanta desgraça? Não há como saber – o que sei é que reapareceu uma, e por mais triste que seja ver sozinho aquele animalzinho que costuma viver em complexas famílias, agora já há um, de novo... Embora as autoridades não reconstruam nada e esta cidade continue parecendo uma cidade bombardeada, a Natureza anda fazendo a sua parte, e eu estou aqui, na torcida para que logo aquele bichinho arranje um amigo, um companheiro...
Ah! Quando poderemos nos livrar daquele pesadelo das Águas de Novembro de 2008! Está sendo tão difícil!
Blumenau, 16 de Maio de 2009.