Vi uma reportagem outro dia sobre os medos das crianças. Primeiro falaram do medo que tinham as crianças do passado, como eu o fui um dia: crianças do meu tempo temiam a Bruxa Malvada, o Bicho-Papão, o Saci-Pererê, e outros relacionados. Na minha infância vi uma única pessoa ameaçar criança com a polícia: era a Dona Honória Farias de Amorim, mãe da minha madrinha, douta mulher que muito sabia da vida e que decerto previa o futuro. Lembro da reação que tive, lá pelos anos sessenta, quando a vi fazer tal ameaça a primeira vez: claro que não levei a sério, achei até engraçado, pois fora criada como um ser humano que deve respeitar a polícia, que considera a polícia como alguém que vai garantir o respeito e amparar o direito de cada um.
Então, vi a reportagem e fiquei de queixo caído: as crianças de hoje já não temem o Bicho Papão e seus correlatos – as crianças de hoje têm medo é da polícia. O repórter trabalhou com crianças do Rio de Janeiro, cidade muito grande, e tanto as crianças dos bairros ricos quanto as crianças da favela tinham medo da polícia, sendo que essas últimas tinham medo, além do mais, de um personagem que eu não conhecia até então: o Caveirão, que é um blindado que adentra nas favelas e, sem nenhuma dúvida, deixa as crianças aterrorizadas. Lembro da vozinha trêmula de uma menininha de uns três anos, dizendo, assustada, do seu medo:
- O Caveirããão...
Bem, isso era lá no Rio de Janeiro, cidade enorme, onde os filhos dos ricos consomem tanta droga que permitem que haja um tráfico dela, sobre a qual se jogam todas as culpas dos problemas sociais não resolvidos. Eu vivia em outro mundo, na cidade de Blumenau/SC, também alcunhada de “a loira Blumenau”, ou vulga “Europa Brasileira”, lugar onde a polícia decerto era bem como me tinham ensinado na infância (excetuando a Dona Honória), onde jamais haveria violência ou Caveirão, onde as crianças podiam continuar acreditando nas malvadezas da Bruxa Malvada sem se preocupar com as maldades humanas. Pelo menos é esta a imagem que o poder público fica vendendo para turistas incautos, que não fazem a menor idéia que só falta se soltar caveirões até pelas ruas centrais da cidade.
A vida tem me ensinado que não é bem assim, no entanto. Tenho presenciado tantas e tais barbaridades da parte da polícia da Europa Brasileira, que já não há como continuar acreditando nas verdades da minha infância. Poderia me estender sobre diversos acontecimentos vistos no coletivo, mas vou me ater a dois fatos da minha insignificante vida pessoal, mas que dão bem a medida de como andam as coisas.
Eu tenho um cachorro, e tomo o maior cuidado para mantê-lo bem, com saúde, bem alimentado, feliz da vida. Jamais o deixaria preso dentro do meu carro ao sol, sofrendo calor e angústia, mas naquele dia caía uma chuvinha fina, estava fresco, e achei que ele poderia me esperar uns dez minutos no estacionamento de um restaurante, enquanto eu deglutia rapidamente algo a guisa de almoço, acostumada que fui pela vida a comer muito depressa. Achei uma vaga para estacionar bem ao lado de um carro da polícia militar, e fiquei contente com tal coisa. Mas foi eu sair do meu carro e um jovem policial militar veio buscar o carro dele. Educadamente, falei com ele:
- Pôxa, que pena! Estava feliz porque meu cachorro ia ficar protegido perto do seu carro – sabe, sempre temo que roubem meu cachorro, pois deixo as janelas abertas pela metade... Que pena que você vai embora!
Meu, ao invés da deferência que eu estava dando ao garoto, parecia que eu era uma abelha que o picara! Saiu para cima de mim sem nenhum respeito sequer pela minha idade, esbravejando por ser ele uma autoridade e eu estar querendo mandar nele, essas baixarias que o poder da força ensinam rapidamente às pessoas que não sabem o que é poder real – e acrescentou:
- E a senhora trate de cuidar bem do seu cachorro, senão eu ainda vou é levá-la presa por maus-tratos aos animais!
Europa Brasileira, sem mais nem menos! Fascismo declarado, nas minhas contas. O garoto era ainda bastante jovem – decerto repetia o que tinham lhe ensinado nos cursos que fizera para ser policial. Tratei de botar o rabo no meio das pernas e ir almoçar às pressas, como pretendia, cuidando para não amargar uma cana caída do céu, sem motivo nenhum.
Daí vou contar o episódio 2, acontecido hoje de manhã. Dei-me conta, ontem, que sumira minha carteira de motorista. Hoje cedo fui à delegacia da polícia civil mais próxima registrar tal fato. Enquanto esperava, ouvia algo que o comissário que estava fazendo registros falava com outro homem que registrava alguma coisa. Não sei bem do que se tratava, mas uma das queixas daquele cidadão era de que tinham quebrado a janela dele. Houvera uma festa ou reunião na casa do vizinho e tinham quebrado a janela dele, ele não sabia bem quem fora. Isso deixava o comissário espumando de raiva:
- Como é que quebram a sua janela e o senhor não sabe quem foi? Quem estava lá? Isto aqui é uma delegacia e são necessários dados precisos, não estamos aqui para brincadeiras, etc. etc. etc.
Não adiantava o homem dizer que havia no local diversas pessoas pois o policial queria o nome do responsável. Pegou um nome qualquer dentre meia dúzia que o homem falou das pessoas que participavam da festa, e fico pensando que, caso haja investigação, aquele sujeito vai ser culpabilizado por ter quebrado uma janela, mesmo que seja inocente. Está cheio de casos assim por aí tudo – inclusive lá naquele país chamado Estados Unidos, onde há muita gente que pensa que só há ricos, felizes e justos.
Então chegou a minha vez. Era coisa pouca, só dizer que havia extraviado minha carteira de motorista – mas levei uma bronca! Se eu que era uma mera extraviadora de meu próprio documento estava sendo tratada assim, aos berros e na ofensa, como será que são tratados os bandidos de verdade? E olhem que sou loira, de olhos azuis, bem o biotipo do que se espera ver na Europa Brasileira – como tratarão a outros biotipos, como será tratado um negro que ali adentrar? E dessa vez não se tratava de um novato – o comissário era bem veterano!
Qual era a argumentação do suj... (ôps, posso ser presa por desacato à autoridade – é melhor usar comissário) para ficar me berrando? Que havia que cumprir a lei, que havia que ir para casa e largar o carro e só andar de ônibus a partir daquele momento, pois do contrário seria multada, presa, teria o carro preso, responderia a processos, etc. etc. etc. – pois havia que cumprir a lei, a lei existia para ser obedecida, etc. etc. etc. – bem como se eu fosse uma criminosa legítima, e berro de lá e berro de cá, e eu bem quieta, ouvindo com humildade, como convêm a quem não quer amargar uma cadeia sem motivo. Numa brecha do berreiro, arrisquei, voz suave:
- Mas não cometi nenhum crime... e o síndico do meu prédio, que botou abaixo a mata ciliar por detrás do condomínio, a coisa fica assim mesmo?
O suj.. (quer dizer, comissário) tinha outro tanto de berros para o meu síndico, mas continuava me ameaçando, e então aproveitei outra brecha:
- E o Jader Barbalho, que roubou todos aqueles milhões?
O homem engasgou. Disse que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, mas bem humildemente eu disse que tinha, pois lá se iam quase dez anos e nada acontecia ao ladraozão...
Sei que foi horrível ter ido à polícia comunicar um extravio de documento. Se não tivesse consciência bem firme da minha própria integridade, acho que nada mais me convenceria de que eu não era uma criminosa de primeira marca.
É assim a famosa Europa Brasileira onde vivo. Qualquer dia começam a passar aí pela rua os Caveirões, e nenhuma criança mais vai temer Bicho Papão nenhum! Se Jader Barbalho merece mais consideração que uma humilde perdedora de uma carteira de motorista, se com Jader Barbalho comissários engasgam por não ter poder sobre, o que resta a nós, pobres humanos comuns?
Blumenau, 29 de outubro de 2008.
Urda Alice Klueger
Escritora e historiadora
sexta-feira, 17 de abril de 2009
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